Já não se pode dizer nada (Por Pedro Guerreiro)

“Sinto-me livre. Já podemos dizer ‘retardado’ e ‘maricas’ sem medo de sermos cancelados. É um novo dia.”

As palavras de um banqueiro de topo, sob anonimato, ao Financial Times em vésperas do regresso de Donald Trump à Casa Branca, resumem bem o estado do debate público sobre a liberdade de expressão nos Estados Unidos.

Sempre foi possível dizer e escrever disparates neste país onde a liberdade para o fazer quase não conhece limites. Junto às caixas de supermercado, revistas como a Globe fazem capa com histórias completamente inventadas (Sabia que a rainha Camila está internada numa clínica de reabilitação para alcoólicos? E que Barack Obama está a divorciar-se de Michelle?). Na internet, redes sociais como o X tornaram o insulto numa profissão bem remunerada. Na política, é-se eleito com um chorrilho de mentiras.

Mas até nos EUA há limites, claro. Alex Jones foi à falência, condenado por difamação, depois de ter feito uma fortuna a negar a morte das crianças assassinadas em Sandy Hook. Esses limites são tênues, contudo. Trump voltou a ser Presidente depois de ter incitado uma multidão a atacar o Capitólio. E é possível marchar no centro de uma cidade norte-americana, de braço em riste e empunhando uma bandeira nazi, porque é visto como um exercício de liberdade política. E nem as arcaicas leis anti-obscenidade, raramente invocadas, impedem os EUA de ser o grande produtor e distribuidor mundial de pornografia.

É possível dizer e escrever quase tudo nos EUA, portanto. O que sempre houve, e continuará a haver, são as consequências sociais do que se diz e escreve. É possível insultar um colega de trabalho? Sim, mas a insubordinação e a hostilidade no local de trabalho são motivos universalmente aceites para despedimento. Pode-se contar uma piada racista entre amigos? Sim, mas não se estranhe se um deles deixar de recebê-lo em casa.

Isto sempre foi claro para quem quis perceber. Quem não quis, cavalgou durante a última década e meia o pânico moral do “já não se pode dizer nada”, da “cultura do cancelamento” e da “ditadura do politicamente correto”. Mas os seus grandes mártires sobreviveram e prosperaram. Humoristas supostamente “cancelados” acumularam fortunas e especiais na Netflix. Comentadores de outro modo irrelevantes construíram carreiras mediáticas. E políticos marginais alcançaram o centro do poder.

O “já não se pode dizer nada” foi um dos chavões do populismo contemporâneo que devolveu Trump à Casa Branca, sobretudo com a promessa de combate a restrições à liberdade de expressão nas redes sociais. O assunto merecia um debate adulto e civilizado. Quase todos os espaços, digitais ou físicos, têm exigências mínimas de civilidade. O diabo está nos detalhes, no que constitui essa exigência mínima, na obtenção de um equilíbrio aceitável entre a liberdade e a civilidade. Mas esses espaços devem também ter a liberdade de fazer essa sua reflexão e tomar as suas decisões.

No caso norte-americano, surge um equívoco recorrente quando se fala disto e é importante esclarecê-lo: a famosa Primeira Emenda da Constituição impede o Estado de restringir a liberdade de expressão, de imprensa, de reunião, de culto e de participação política; não impede uma rede social de criar as suas próprias regras.

Paradoxalmente, mas sem grande surpresa para quem quis perceber o que sempre esteve em causa, é a Administração Trump que viola neste momento, e em múltiplas frentes, a Primeira Emenda.

O Governo norte-americano proíbe agora a utilização de um vasto conjunto de palavras nos seus sites e documentos, nas escolas e instituições financiadas pelo Estado, nas Forças Armadas, bem como nas candidaturas a verbas para investigação científica, para organizações não-governamentais ou para programas de assistência humanitária. Palavras como “transgénero”, “diversidade”, “desinformação”, “ativismo”, “institucional”, “racismo” ou “género” são algumas que entram em listas negras com dezenas ou centenas de vocábulos.

As listas de palavras proibidas evidenciam flagrantemente o seu propósito: proibir certos tipos de discursos e de atividades conotados com agendas progressistas. Mas acabam por gerar danos colaterais: termos que têm significados muito concretos nas ciências exatas e que não são correspondentes ao seu uso quotidiano, como “viés”, também podem motivar ações disciplinares ou o cancelamento de verbas.

A purga de palavras é também um instrumento na estratégia mais vasta de Donald Trump e de Elon Musk para reconstruir o Estado à imagem da sua agenda e dos seus interesses. Todo o trabalho de vastíssimas áreas da administração federal, da educação à ciência, passando pela ajuda humanitária ou pela regulação de produtos financeiros, encontra-se paralisado há quase um mês enquanto milhares de programas e iniciativas são passados à lupa, em busca de termos proibidos. Encerram-se agências, gabinetes e projetos. Suspendem-se e despedem-se funcionários. Rasgam-se contratos e congelam-se milhares de milhões de dólares em fundos devidamente aprovados pelo Congresso. Apagam-se arquivos valiosíssimos.

O direito à autodeterminação de gênero está agora largamente proibido nas Forças Armadas, na administração pública e nas escolas financiadas pelo Estado. Ninguém era antes obrigado a usar pronomes neutros; agora ninguém pode fazê-lo. Teme-se ainda que as tais leis arcaicas contra conteúdo obsceno venham a ser reinterpretadas e recuperadas para restringir o acesso ao aborto a nível federal e para criminalizar qualquer expressão pública por parte de indivíduos LGBTQ. Parece rebuscado, mas é uma estratégia que começa a fazer caminho nos tribunais, e é um assunto a que voltarei nos próximos meses.

A Administração Trump viola também a Primeira Emenda ao atacar e punir jornalistas por fazerem o seu trabalho. A agência noticiosa Associated Press foi esta semana expulsa da Sala Oval e de outros espaços da Casa Branca por ter optado por continuar a referir-se ao golfo do México como tal, e não como “golfo da América”, como Trump desejaria. Um artigo de opinião em tom crítico assinado por Eugene Robinson no Washington Post valeu uma publicação do Presidente nas redes sociais a dizer que o colunista “devia ser despedido imediatamente”. Katherine Long, do Wall Street Journal, foi também alvo do mesmo apelo, e de insultos pessoais, por ter revelado que um dos membros do gabinete de Elon Musk era autor de publicações racistas.

No Congresso, o Partido Republicano prepara comissões de inquérito a órgãos de comunicação social que Trump associa à oposição, como as cadeias públicas NPR e PBS. Televisões como a CBS, a NBC e a ABC vão ser investigadas pela Comissão Federal de Comunicações por queixas de cobertura desfavorável aos republicanos durante a última campanha eleitoral. Em alguns casos, as respectivas administrações aceitaram já celebrar acordos extrajudiciais multimilionários, mesmo que os seus jornalistas reiterem que fizeram apenas o seu trabalho.

Estes, sim, são exemplos reais de policiamento de palavras e de restrição, pelo Estado, da liberdade de expressão e da liberdade de imprensa.

Os Estados Unidos estão a terminar a quarta semana do segundo mandato de Trump e têm pela frente outros quatro anos. Não sairão tão cedo da armadilha em que entraram, atrás do “já não se pode dizer nada”. Mas talvez sirvam de aviso aos que, fora das suas fronteiras, se preocupam verdadeiramente com a liberdade. Serão os mesmos que passaram a última década a vociferar contra o “wokismo” e o “politicamente correto” que, curiosamente, nunca os impediu de escrever e falar? Não é claro. De momento, parecem preferir exercer o seu direito ao silêncio.

 

(Transcrito do PÚBLICO)

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