Quem ainda usa cheque? Meio de pagamento vira lenda com queda de 95% em 30 anos

Pré-datado, o cheque pode estar contando os dias para ter as suas últimas folhas assinadas — e emitir a ordem para a sua aposentadoria. Trocadilhos à parte, embora não haja uma previsão de quando isso vá acontecer, a Federação Brasileira de Bancos (Febraban) mostrou recentemente que o volume de transações com o instrumento caiu 95% em 30 anos.

Em 2024, foram contabilizados 137,6 milhões de usos, muito aquém dos 3,3 bilhões de cheques compensados em 1995, quando teve início a série histórica do Serviço de Compensação de Cheques (Compe). O declínio vai no embalo da ascensão dos meios de pagamento digitais, sobretudo o Pix.

Mesmo assim, ele continua presente na vida de muitos brasileiros. Dados do Banco Central mostram que, no primeiro semestre de 2024, 44% dos cheques emitidos estavam concentrados na região Sudeste, e 27%, na região Sul. Entre os usuários, a maioria (70%) é formada por homens.

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A economista Carla Beni, professora da Fundação Getulio Vargas (FGV) e integrante do Conselho Regional de Economia do Estado de São Paulo (Corecon-SP), ressalta que o fator geográfico tem um peso importante no uso da ordem de pagamento. Isso porque há uma concentração em cidades pequenas, onde existe uma maior relação de proximidade e confiança entre quem emite e quem recebe. 

“Como o cheque não é moeda, mas uma ordem de pagamento à vista, quem o aceita precisa ter segurança sobre a idoneidade do emissor.”

— Carla Beni, professora da FGV e membro do Corecon-SP

Para os especialistas ouvidos pelo InfoMoney, entre os entraves do cheque está a sua ineficiência operacional. Mais burocrático, o seu processo de compensação não é imediato, e há ainda a exigência do deslocamento físico para transformar a ordem em dinheiro. Junto a isso, ele não acompanhou a evolução do comércio eletrônico, segmento que tem crescido exponencialmente desde a pandemia.

Parcelamento, desconto e prazo

Apesar do declínio como forma de pagamento, o cheque ainda oferece benefícios. Fabio Takimoto, assessor técnico da Febraban, lembra que alguns consumidores, sem acesso ao crédito, continuam recorrendo ao cheque, especialmente para parcelamentos. 

“Muitos comerciantes ainda preferem receber pagamentos assim, para evitar as taxas das maquininhas de cartão. E há consumidores que não possuem um limite de crédito disponível no banco, e veem no cheque uma alternativa de pagamento que não exige um crédito pré-aprovado”, afirma Takimoto.

E por falar em comércio, Ulisses Ruiz de Gamboa, economista da Associação Comercial de São Paulo (ACSP), explica que outro atrativo é a possibilidade de negociar prazos. “O comerciante pode emitir um cheque para pagamento futuro a um fornecedor, e ganhar tempo para vender o produto antes do vencimento”, diz. 

Ele lembra que o uso permite que empresários programem pagamentos sem comprometer o limite do cartão de crédito, o que pode ser vantajoso. 

“Sem ele, muitos microempreendedores acabam utilizando o próprio cartão pessoal para financiar as compras da empresa.”

— Ulisses Ruiz de Gamboa, economista da Associação Comercial de São Paulo (ACSP)

Indagado sobre quando foi a última vez que ele próprio precisou preencher uma folha do talão, Gamboa não conseguiu memorizar o momento exato. “Foi há mais de cinco anos, antes da pandemia. Se eu ia receber meu salário na segunda-feira, saía para jantar no sábado, e pagava com um pré-datado”, conta.

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Do status às fraudes

Por muitos anos, usar o cheque era sinônimo de status e de um bom relacionamento com bancos. Carla Beni tinha só 16 anos quando ganhou o primeiro talão, presente do avô, que abriu uma conta para ela. “Nem havia saldo, mas, na época, aquilo era um símbolo de responsabilidade financeira.”

Só que os anos foram passando, e com a chegada de meios de pagamentos mais modernos, que vão desde os cartões de crédito, passando pelo TED (Transferência Eletrônica Disponível) e o DOC (Documento de Ordem de Crédito), até chegar ao Pix, os cheques na vida da economista foram perdendo espaço. 

“A última vez que o usei foi em maio de 2019. Paguei um fogão em duas parcelas de R$ 1 mil, uma em abril e outra no mês seguinte”, revela Carla. Antes disso, sua última utilização havia sido em 2018, quando entrou em um plano de saúde. De lá pra cá, um fardo de folhas em branco permaneceram no talão — sem que ela visse a necessidade de pedir um novo.

Carla Beni não usa cheques desde 2019 e tem um talão com folhas em branco. (Foto: Arquivo pessoal)

Apesar disso, no passado os bancos enfrentavam desafios para lidar com cheques sem fundos. Gamboa, economista da ACSP, explica que a falsificação e a clonagem eram problemas recorrentes, contribuindo para a queda da confiança desse meio de pagamento. 

Também era comum ter um cheque devolvido por falta de saldo no momento da compensação. Nesse caso, o emissor ainda tinha a chance de cobrir o valor antes da segunda apresentação. “Caso não o fizesse, seu nome era incluído no Cadastro de Emitentes de Cheques sem Fundos (CCF), e ele ficava impedido de emitir novos cheques até regularizar a situação.” 

Ainda assim, Takimoto, da Febraban, destaca que foi justamente a queda no volume de transações que ajudou os bancos a adotar um monitoramento mais rigoroso sobre os cheques que ainda circulam, mitigando possíveis fraudes. 

“As instituições já não promovem o cheque como faziam no passado. Hoje, a oferta ocorre mais por demanda do cliente do que por iniciativa dos bancos.”

— Fabio Takimoto, assessor técnico da Febraban

Até onde vai o cheque?

O ano era 2000 e Fabio Takimoto precisava comprar uma aliança. Na hora de pagar, o vendedor ofereceu um desconto maior se fosse em cheque. “Já são 25 anos sem usar. Acho que contribuí bastante para essa queda de 95% no uso do cheque no Brasil”, brinca, sobre a última vez que preencheu uma folha de cheque.

Mas não somente pela queda na busca por esse tipo de método, Takimoto ressalta que, ao analisar pelo lado financeiro, ele tem sido mais oneroso do que vantajoso para as instituições. 

Seu processamento gera custos como impressão, transporte de malotes e até mesmo em relação ao impacto ambiental, visto o uso de papel e emissões de CO₂. “Os bancos estão cada vez mais focados em sustentabilidade e eficiência, e o cheque vai contra essa tendência”, frisa.

Não por acaso, a oferta desse produto se concentra entre os bancões tradicionais, deixando de fazer parte do portfólio de fintechs e bancos digitais. Inclusive, o Nubank até lançou o seu talão em 2021, mas as páginas de preenchimento continham promoções e descontos com parceiros, não ordens de pagamento.

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