Alemanha entre o passado e o futuro (por Marcos Magalhães)

Vinte em cada 100 alemães, é verdade, votaram pela extrema-direita. O passado parece bater à porta. Mas os democrata-cristãos e os social-democratas, novamente, vão formar o governo em uma grande coalizão. Será este o futuro?

Oito dias antes das eleições, o vice-presidente dos Estados Unidos, J D Vance, criticou os maiores partidos alemães por promoverem o que chamou de “firewall” contra a Aliança pela Alemanha (AfD), que acabou conquistando 20% dos votos.

A ascensão dos neonazistas, em sua opinião, deveria ser encarada com naturalidade. E o partido que mais cresceu no pleito deste ano poderia ser chamado a fazer parte do futuro governo. “A democracia repousa no princípio sagrado de que a voz do povo importa”, disse.

Pois é, mas foram os democrata-cristãos os mais votados, com 28%. Portanto, cabe a eles tomarem a iniciativa de escolher os aliados. A voz do povo importa.

Esses aliados, provavelmente, serão os social-democratas. Sim, eles têm ideias diferentes sobre temas como impostos, imigração e condução da economia. As diferenças entre democrata-cristãos e os neonazistas, porém, são maiores.

O líder do CDU, Friedrich Merz, deu uma escorregada em janeiro, em tentativa de endurecer as regras de migração com o apoio de votos da extrema-direita. Foi bastante criticado por isso. Seria como quebrar um grande tabu.

Após vencer as eleições, Merz negou a mão estendida pela AfD ao futuro governo. “Temos opiniões diferentes sobre política externa, política de segurança e a Otan”, recordou. “Podem estender a mão quanto quiserem”.

Ou seja, ao contrário do que queria Vance, o firewall parece permanecer intacto. Apesar de todos os apelos de Elon Musk, megaempresário e eminência parda da administração de Donald Trump, em favor da extrema-direita.

Esse cordão de isolamento montado pelos dois maiores partidos tradicionais da Alemanha, os democrata-cristãos e os social-democratas, indica ser um sinal do futuro do país – pelo menos do futuro próximo.

A onda de direita que parece banhar quase todos os oceanos do planeta pode ser contida ali enquanto os dois partidos estiverem reunidos. Merz pode ser considerado de direita, mas de uma direita moderada, isso que antigamente chamávamos de centro-direita.

Olaf Scholz, o chanceler que vai deixar o cargo, também não é exatamente de esquerda, mas de centro-esquerda. A esquerda tradicional, aliás, também cresceu nessas eleições, ao conquistar 8,7% dos votos e 64, das 630 cadeiras.

E por que a política tradicional foi tão chacoalhada nessas eleições? Por que os social-democratas tiveram apenas 16,4% dos votos, em seu pior resultado desde a Segunda Guerra Mundial?

Bem, a Alemanha não é mais a mesma. Os eleitores votaram com o fígado, insatisfeitos pelo pobre desempenho da economia. Foi-se o tempo de um país que crescia baseado em exportações e que havia construído um grande contrato social, que incluía a cogestão e a participação nos lucros de suas principais indústrias.

O fato é que a economia mundial mudou. E a guerra na Ucrânia acelerou esse processo, ao levar a Alemanha a confiar menos no gás russo. Se antes contava com energia barata e proteção militar americana, agora os alemães enfrentam um mundo incerto e uma grande competição de um gigante como a China.

Até mesmo as grandes fabricantes de automóveis enfrentam dificuldades com a ascensão dos fabricantes chineses e sua revolução nos carros elétricos. Tudo isso – aliado à pressão migratória – provocou angústia nos eleitores alemães.

Quando o medo bate à porta, é mais fácil procurar um lugar seguro no passado. Quem sabe isolando o país e fechando as portas a estrangeiros, como quer a AfD. Uma fugaz sensação de segurança diante da realidade hostil.

O apelo ao passado seduziu 20% dos eleitores. São crescentes os casos de demonstrações de xenofobia no país contra imigrantes, inclusive brasileiros. Uma brasileira que vive no leste alemão, por exemplo, relatou à Deutsche Welle que, ao olhar para ela no transporte público, um alemão estendeu o braço direito à frente, em gesto nazista.

Para manter o país sereno e democrático, Merz pretende governar com seus tradicionais adversários social-democratas. Se eles chegarem a um acordo, alcançarão razoável maioria no Bundestag e poderão integrar um governo estável.

Mesmo assim, porém, as ameaças continuarão lá. A Alemanha precisará reinventar a sua economia, para enfrentar, por exemplo, a concorrência chinesa. E terá de renovar a sua política externa, pois sabe que contará menos com os Estados Unidos.

Na frente interna, Merz pretende dar início rapidamente às conversas para a formação do novo governo, negociando as principais diretrizes do país com os social-democratas.

Na frente externa, o futuro chanceler sabe que precisará redesenhar seu papel na Europa e no mundo. Isso porque já percebeu que os principais países europeus não estão entre as prioridades do novo governo dos Estados Unidos.

“Minha prioridade absoluta será fortalecer a Europa o mais rápido possível, para que, passo a passo, possamos realmente alcançar a independência dos EUA”, informou.

“Está claro”, prosseguiu, “que os americanos, ou pelo menos parte dos americanos, neste governo, são amplamente indiferentes ao destino da Europa”.

O futuro da Europa, por tudo que indica o novo governo dos Estados Unidos, parece mesmo indicar a necessidade de uma grande reinvenção política, econômica e militar.

Boa parte dessa imensa tarefa caberá a Merz, agora líder da maior potência econômica europeia. Grandes desafios estarão à sua frente.

 

Marcos Magalhães. Jornalista especializado em temas globais, com mestrado em Relações Internacionais pela Universidade de Southampton (Inglaterra), apresentou na TV Senado o programa Cidadania Mundo. Iniciou a carreira em 1982, como repórter da revista Veja para a região amazônica. Em Brasília, a partir de 1985, trabalhou nas sucursais de Jornal do Brasil, IstoÉ, Gazeta Mercantil, Manchete e Estado de S. Paulo, antes de ingressar na Comunicação Social do Senado, onde permaneceu até o fim de 2018.

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