Um Hitler fixe (Por Fernanda Hamann)

A criação de figurinhas no WhatsApp inaugurou um código de comunicação social. Para quem gosta de humor e domina a técnica de montar imagens, é um meio de expressão muito fértil. Quase uma arte pós-moderna, de forte apelo emocional, capaz de provocar riso, empatia, identificação. Uma vez que um sujeito monta e envia a figurinha ao outro, ela passa a fazer parte dos acervos de ambos. Assim tem início um efeito multiplicador: algumas dessas obras anônimas se tornam memes, que representam e reforçam um repertório de ideias e valores compartilhados.

Qual não foi a minha surpresa, num grupo de WhatsApp, quando o meu filho de 12 anos enviou uma figurinha perturbadora. Era uma foto de Adolf Hitler fazendo o gesto do hang loose — uma saudação comum entre os surfistas, ao menos no Brasil, associada a pessoas tranquilas e descoladas. Em suma: era a foto de um Hitler fixe.

Quando o interpelei, descobri que o meu filho nem sabia quem era aquele simpático senhor. Achou que era Charles Chaplin, que satirizou o grande ditador no cinema. Ele usou a figurinha apenas para responder a uma mensagem banal. E o que mais me impactou foi essa banalidade do mal – para revisitar Hannah Arendt no século XXI. Quem teria criado e colocado em circulação aquela imagem? Como esse projeto de rebranding de um genocida alemão chegou ao telefone celular de um menino em Portugal?

Mais do que banalidade, trata-se de um processo de banalização do mal. O mesmo operado pelo partido de extrema-direita Alternative für Deutschland (AfD), quando afirma que nem todos os membros da SS eram criminosos, ou quando propõe uma reescrita da História de modo que a Alemanha não se envergonhe do passado nazista — proposta apoiada por Elon Musk numa recente convenção da legenda. E o mesmo vale para os portugueses que sentem saudades de Salazar, ou para os brasileiros que votariam em Bolsonaro no ano que vem, sabendo da sua participação num plano de golpe militar que envolvia assassinar o presidente, o vice-presidente e um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF).

Talvez assustado pela minha reação de choque, meu filho disse que não sabia como aquela figurinha foi parar no seu acervo. Ele frequenta uma escola pública em Lisboa, com amigos de várias nacionalidades, o que sempre considerei um tesouro cultural para a sua formação. Daí o espanto ao me deparar com um ícone que vai na contramão desse valor pluralista e tão democrático.

Precisei me sentar com o meu filho, mostrar fotos na internet, tentar transmitir os horrores das duas Grandes Guerras, que ele ainda não estudou na escola. Guerras que tiveram origem num contexto semelhante ao atual, com a exacerbação dos nacionalismos e o esgarçamento das soluções diplomáticas para os conflitos internacionais. Um esgarçamento que remete à imagem de uma corda, prestes a se romper numa Terceira Grande Guerra, tensionada pelo risco do uso de armas nucleares. Imagem tão terrível que não cabe numa figurinha. Precisamos trabalhar duro para que ela não caiba na realidade.

 

(Transcrito do PÚBLICO-Brasil)

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