Agrofloresta: o espaço de resiliência e fertilidade do solo

Em um ano e meio de experimento com um sistema agroflorestal no bairro Lomba Grande, em Novo Hamburgo, o casal Rafael Figueiredo, 39 anos, e Janine da Silva, 40, atravessou as chuvas torrenciais de maio do ano passado e a estiagem deste ano sem danos significativos na plantação.

Projeto de produção de alimentos em Lomba Grande também tem um viés educativo sobre o uso da terra | abc+



Projeto de produção de alimentos em Lomba Grande também tem um viés educativo sobre o uso da terra

Foto: Susana Leite/GES-Especial

Não se pode dizer que os alimentos que brotam na agrofloresta tiveram cem por cento de aproveitamento, porque uma das variedades de milho plantado fora consumido pelas caturritas antes da colheita. Aparentemente as cocotinhas se serviram do milho asteca em retaliação à falta das sementes de girassol. Mas isto é outra história.

O fato é que o casal tem conseguido comprovar aquilo que vem estudando há muitos anos: que uma relação harmoniosa com a terra, respeitando seus ciclos, resulta em solo fértil e alimentos em abundância. Dos três hectares, 1,5 ha é destinado ao Sistema Agroflorestal (SAF), mas a intenção é seguir expandindo o projeto.

A lista de alimentos cultivada é longa, incluindo hortaliças, frutas como abacaxi e banana, além de açafrão, gengibre, entre outros como mandioca. Abelhas-sem-ferrão convivem estrategicamente ao redor das plantações. O resultado são ciclos fartos de alimentos e sem a necessidade de uso fertilizantes ou sistema de irrigação. A natureza faz todo o trabalho.

Agroflorestas não são uma novidade. Existem desde antes da colonização no Brasil, mas nas últimas décadas as atenções se voltaram a esses tipos de cultivos, entre outros como plantio direto, por exemplo, por conta dos extremos climáticos. É notável que lavouras de monocultura sofrem mais com estiagem se não houver um sistema de irrigação. Além disso,  dependem de fertilizantes e outros insumos para se desenvolver.

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Conservação das propriedades do solo é notável a partir do desenvolvimento das plantas | abc+



Conservação das propriedades do solo é notável a partir do desenvolvimento das plantas

Foto: Susana Leite/GES-Especial

Adversidades do clima na agricultura

A agricultura tradicional também sofreu os impactos das chuvas de maio do ano passado, que lavaram plantações e encharcaram solos em diversas regiões do Rio Grande do Sul. Diante daquele cenário uma verdadeira força-tarefa, que uniu a Secretaria da Agricultura, Pecuária, Produção Sustentável e Irrigação (Seapi), a Emater-RS/Ascar e o Departamento de Solos da Faculdade de Agronomia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), para recuperar solos agriculturáveis no Estado.

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As Notas Técnicas elaboradas a partir dos estudos servem de embasamento para técnicos e agricultores manejarem as a plantações a partir de agora. O entendimento de pesquisadores é de que não só a recuperação, mas também a manutenção dos solos passa por tecnologias que baixo impacto ambiental.

Coordenador do Plano ABC+ no Rio Grande do Sul e pesquisador do Departamento de Diagnóstico e Pesquisa Agropecuária (DDPA), Jackson Brilhante é taxativo: solo fértil é solo que tem carbono. E são justamente as árvores que executam o melhor serviço de fixar o carbono no solo.

No Rio Grande do Sul, exemplos promissores têm demonstrado que é possível conciliar sistemas agroflorestais com alta produtividade, como o caso da erva-mate na região de Machadinho, na Região Noroeste. Além disso, dentro do escopo do Plano ABC+ outras tecnologias com o propósito de reduzir a emissão de carbono também seguem sendo difundidas entre agricultores em diversas frentes. Sobre os sistemas agroflorestais, afirma Brilhante, a meta do ABC+ é a ampliação de 5 mil hectares até 2030. 

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SAF mantém biodiversidade no cultivo de alimentos

Sistema agroflorestal é um tipo de tecnologia em que espécies de plantas são consorciadas dentro do mesmo espaço. Não há a necessidade de derrubar árvores para plantar alimentos. A presença de um componente florestal, a partir das raízes, oferece nutrição e hidratação no solo.

“Esse consórcio enriquece o solo com a fixação do carbono, que é o principal indicador de qualidade; o carbono organiza as partículas, como um agente ‘ligante’”, explica Brilhante, que aponta outra vantagem que a diversificação de cultivos oferece: “Do ponto de vista econômico, é muito vantajoso porque o produtor tem uma oportunidade de gerar renda em mais de uma cultura.”

Como ocorre a fixação do carbono no solo

Dentro de um Sistema Agroflorestal, as árvores têm o potencial de capturar os gases do efeito estufa, como CO2 (gás carbônico) e CH4 (gás metano), e apreender o carbono dessas moléculas.  No caso do carbono, essa molécula sai da atmosfera e se fixa no caule, nas folhas e nas raízes das árvores. Dessa forma se infiltra no solo, tornando-o mais fértil. Os benefícios são múltiplos, porque ao mesmo tempo que retira gases do efeito estufa da atmosfera, também contribui para a fertilidade do solo.

Rio Grande do Sul possui mais de 250 SAF certificados

O consórcio entre lavoura e floresta tem sido mais difundido nas pequenas propriedades pelo interior do Estado, segundo observa Brilhante. Inclusive ele cita que há crescimento do número de certificações desta tecnologia nos últimos anos. De acordo com dados da Secretaria do Meio Ambiente e Infraestrutura (Sema), o Estado possui 252 certificados florestais de sistemas agroflorestais emitidos.

No último ano, segundo a diretora de Biodiversidade da Sema, a bióloga Cátia Viviane Gonçalves, foram emitidas 50 certificações. “A certificação da Sema proporciona ao proprietário rural segurança jurídica, incentivos econômicos e contribui para a conservação ambiental, promovendo um manejo sustentável e responsável dos recursos naturais”, explica.

Sistema agroflorestal na erva-mate traz resultados econômicos

Sistema agroflorestal começou a ser estruturado em 1995 e ao longo dos anos passou por melhoramentos  | abc+



Sistema agroflorestal começou a ser estruturado em 1995 e ao longo dos anos passou por melhoramentos

Foto: Emater/Divulgação

O cultivo da erva-mate é um exemplo consolidado no Rio Grande do Sul de consórcio entre plantas, aponta Brilhante. A atividade vem sendo desenvolvida na região de Machadinho, município do Noroeste do Estado, desde 1995 de forma mais estruturada.

A erva-mate produzida a partir do sistema agroflorestal de Machadinho conquistou Indicação Geográfica, a primeira do setor de ervateiro no Rio Grande do Sul. “Acreditamos que a Indicação Geográfica possa inaugurar um quarto ciclo de desenvolvimento para a região”, comenta o assistente técnico regional da Emater/Ascar Ilvandro Barreto de Melo, que também coordena a Câmara Setorial da Erva-Mate.

Até conquistar a Indicação Geográfica, o sistema passou por adaptações, desde a década de 1990, o que permitiu a evolução do cultivo. Inicialmente o consórcio de plantas era feito com soja, mas com o surgimento da ferrugem (praga que afeta a soja), o plantio foi suspenso. Depois o consórcio passou a ser feito com grãos como arroz, feijão e milho, alimentos que acabavam sendo para consumo dos agricultores. Mas o cultivo não parou por aí.

Melo explica que foram enriquecendo a biodiversidade da agrofloresta com a introdução de outras espécies arbóreas. “Foi aí que nasceu o Sistema Agroflorestal de Cambona 4, utilizando no primeiro momento as plantas de erva-mate, os cultivos agrícolas e depois a presença das outras espécies arbóreas, que seria ali no caso outras espécies de árvores nativas.” No RS, existem cinco regiões ervateiras, mas é a de Machadinho que se que desenvolveu no sistema de agrofloresta.

SAF da erva-mate em Machadinho, no Noroeste do Estado, conquistou Identificação Geográfica | abc+



SAF da erva-mate em Machadinho, no Noroeste do Estado, conquistou Identificação Geográfica

Foto: Emater/Divulgação

Projeto Cambona 4 teve aprimoramentos

O Sistema Agroflorestal Cambona 4 foi aprimorado ao longo dos anos à medida que outras espécies de árvores passaram a fazer parte dos cultivos. Angico, araucária e cedro são alguns exemplos bem sucedidos no consórcio com a erva-mate.

“Esse sistema cresceu na medida em que os estudos foram avançando, através de um trabalho da Apromate (Associação de Produtores de Erva-Mate de Machadinho), da Emater, da Embrapa Florestas, da Secretaria Municipal de Machadinho, se estabeleceu então um programa específico para este sistema agroflorestal”, pontua Barreto. Como resultado, dentro do programa estabelecido a região obteve a cultiva Cambona 4.

“É a única cultivar de erva-mate do Rio Grande do Sul”, destaca. A espécie foi reconhecida pelo alto desempenho da planta, velocidade de rebrote, produtividade e sabor suave. Tudo isso fruto de um sistema agroflorestal.

Símbolo do RS tem potencial de redução de carbono

Consórcio entre erva-mate com outras árvores de grande porte trouxe ganhos para o cultivo em Machadinho | abc+



Consórcio entre erva-mate com outras árvores de grande porte trouxe ganhos para o cultivo em Machadinho

Foto: Emater/Divulgação

Também durante da Expodireto Cotrijal, foi realizado o 17º Fórum Florestal/RS. E neste encontro a erva-mate, árvores símbolo do Rio Grande do Sul, foi o tema central dos debates por conta do potencial para reduzir a presença de CO2 na atmosfera.

Ilvandro Barreto de Melo participou do fórum destacando que a árvore da erva-mate incorpora carbono no tronco, nas folhas e no solo. Por conta deste potencial, entre as propostas apresentadas no evento foi o Projeto Geração de Créditos de Carbono pela Erva-mate.

A iniciativa teria investimentos de 20 organizações globais e seria implantadas em três polos, chegando a 10 mil hectares. Até o momento o projeto apenas foi apresentado, mas tem sido bem recebido justamente pelo potencial econômico que a erva-mate representa para o Rio Grande do Sul.

Expansão de projetos no Rio Grande do Sul

Outra frente do Plano ABC+ que atua com sistemas de agropecuários de baixa emissão de carbono é o Sistema de Integração Lavoura-Pecuária-Floresta (ILPF). Durante a Expodireto Cotrijal, em Não-Me-Toque, foi assinado o Acordo de Cooperação Técnica (ACT) para a implantação do Integra RS, programa dedicado ao fomento da expansão do Sistema de Integração Lavoura-Pecuária-Floresta, entre o governo do Estado e a Associação Rede ILPF. A expectativa é que a partir deste convênio sejam identificadas áreas estratégicas para a adoção do Sistema ILPF.

Irrigação é o recurso mais urgente

A estiagem no Rio Grande do Sul fez com que o Plano ABC+ incorporasse os sistemas de irrigação nesta última etapa, de 2020 a 2030. “As estiagens estão mais frequentes e a irrigação traz esse caráter de adaptação”, explica o coordenador do Plano, Jackson Brilhante. A adaptação da planta resulta em produtividade. “A planta vai produzir mais, vai crescer mais raízes, e essas raízes vão virar carbono e vão ser acumulados no solo”, resume.

Brilhante afirma que 50% da meta de irrigação no Estado já foi atingida, isto graças às políticas públicas da Secretaria da Agricultura, Pecuária, Produção Sustentável e Irrigação (Seapi). “As áreas irrigadas estão avançando, mas também a gente precisa reservar água de maneira adequada. Por isso, políticas públicas de reservação de água caminham paralelamente com a implantação de sistemas irrigados”, acrescenta.

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Família de Lomba pretende semear conhecimento

Antes de se tornarem agricultores, Rafael e Janine trabalharam com educação em áreas de periferia, onde a falta de alimentos era muito presente. Essa experiência despertou nos dois o interesse de trabalhar com produção de alimentos. Janine é bióloga e cursa doutorado em Desenvolvimento Rural na UFRGS; Rafael tem formação em música e também é meliponicultor. Da união deles, nasceu Valentim, de 7 anos, e o propósito de compartilhar o conhecimento sobre agroecologia.

Eles vão inaugurar no final do mês um centro de educação ambiental, que pretende levar grupos de estudantes para conhecer a agrofloresta. Janine explica que a proposta é realizar práticas que envolvem o uso da terra. “Quando nos mudamos pra cá, começamos a produzir na terra seguindo os princípios da agroecologia: sem nada de insumo químico, sem agrotóxico. Só com a produção, a matéria, a palha”, explica Janine.

Ano passado foram realizados os primeiros encontros com turmas de uma escola local. Além disso, foram realizados encontros com outros agricultores da localidade, bem como atividades com grupo de mulheres. O propósito é mostrar que o cultivo de alimentos pode feito de uma forma além do convencional. A produção do casal e Lomba é comercializada diretamente com os consumidores. Além dos alimentos plantados, o casal comercializa própolis de abelha nativa, da espécie Mandaçaia.

E as cocotinhas?

Rafael e Janine plantaram uma variedade de milhos, alguns coloridos e até milho asteca, de sementes que ganharam de outro agroecologista. Embora um pouco exigente, segundo Rafael, a variedade de origem mexicana se desenvolveu bem, mas acabou sendo consumida pelas caturritas. Mas Janine explica que entre as plantas eles costumavam plantar girassol, que depois de seco fornece sementes para os pássaros. Ocorreu que quando o milho amadureceu, o casal já havia colhido o girassol, o que acabou deixando os pássaros sem o alimento favorito. Então, eles se serviram do milho asteca. 

 

 

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