HÁ VINTE ANOS – Grisalho radical (por Armando Mendes)

Lá vinha o salva-vidas em nossa direção, no momento em que saíamos da água, meu filho segurando na minha mão para vencer a correnteza.

Bom dia, bom dia.

O senhor não deve ser daqui, não sabia que nesta praia a corrente puxa muito quando a maré está baixando?

É, não sabia mas estou percebendo.

Então veja, eu queria lhe pedir pra cair na água uns cem metros mais adiante, o mar é mais calmo lá, não leve a mal a precaução, nunca se sabe, ainda mais que o senhor trouxe seu neto pra tomar banho de mar…

Meu filho olhou torto para o guarda do alto de seus oito anos. Eu já estou acostumado. Ninguém fica grisalho aos quarenta impunemente. Pior: os quarenta passaram há mais de dez anos e cheguei ao estágio que pode ser chamado de grisalho radical (ou como dizia o cineasta Silvio Tendler: cinqüenta é aquela idade em que a cabeça dos homens fica branca, e a das mulheres, vermelha).

Outro dia, comprando ingressos na Estação Pinacoteca, um museu aqui em São Paulo, a bilheteira foi muito gentil quando pedi uma inteira.

O senhor sabia que pessoas com mais de 60 anos pagam meia?

Muito obrigado, minha filha, não é o caso. Ainda.

Menos mal que a exposição era dos manuscritos do mar Morto. Uns pedacinhos de pergaminho de dois mil anos de idade. No mínimo, nossas noções de velhice ficam muito relativas.

O problema é que no final da exposição tinha uma lojinha de cosméticos feitos com os sais do mar Morto: cremes para a pele, essas coisas. Achei uma sacanagem com as moças de cabelos vermelhos. Não era a hora de lembrar disso. D¢us castiga (era assim que os essênios, os escribas dos manuscritos, soletravam o nome da divindade, em grego, hebraico e aramaico – não é de hoje que aquele pedaço do mundo é confuso).

Enfim, os cabelos brancos me permitem garantir por experiência própria: os jovens não esqueceram inteiramente as boas maneiras. De vez em quando me oferecem lugar sentado no metrô ou no ônibus.

Na semana passada foi um rapaz evangélico, de terno preto e Bíblia em punho. Agradeci e dispensei a gentileza. Bem que tentei recusar graciosamente, sem parecer grosseiro. Ainda assim, notei que ele ficou desapontado.

Mas não durou muito. Logo duas ou três estudantes que também viajavam em pé aceitaram que ele segurasse suas mochilas. O cara ficou feliz da vida, suando em bicas naquele terno preto e soterrado por livros e cadernos. D¢us o pague.

 

(Publicado aqui em 27 de março de 2005)

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