A abominação é mútua (por Miguel Esteves Cardoso)

É muito raro que alguém de quem não gostamos nada goste um bocadinho de nós. Geralmente, as pessoas gostam tanto ou tão pouco de nós como nós gostamos delas.

É preciso ser-se vaidoso – coisa que quase todos nós somos, se arranharmos um pouco o verniz com que nos tapamos – para pensar que os outros gostam mais de nós do que nós deles.

A fantasia por trás da nossa vaidade é que os outros são parvos – e é por isso que pensam que nós gostamos deles. Até nos rimos desse desnível ilusório, tal é a nossa sobranceria.

Do fundo da nossa periclitante autoestima, achamos uma coisa inacreditável: “Eu sou melhor do que eles e, como tal, eles gostam mais de mim do que eu gosto deles, porque lhes trago mais do que eles me dão a mim, e assim atinge-se uma espécie de equilíbrio.”

Nós ouvimos Pete Hegseth, J.D. Vance e Trump a dizer que nós, os europeus, somos patéticos e achamos que eles foram apanhados a faltar-nos ao respeito. Mas por que carga de algodão-doce é que aquelas três bestas hão-de gostar mais de nós do que nós gostamos deles?

Eles sentem-se desprezados por nós. Estão fartos de saber o que nós pensamos deles – até porque nós não nos calamos.

Os americanos já fervem com a arrogância e a condescendência dos europeus, com as nossas falinhas mansas quando queremos cravar mais uns dólares e, sobretudo, com a nossa convicção que é aqui na Europa, encharcados em cultura e civilização, que sabemos viver, enquanto os americanos que votaram no Trump não passam de selvagens.

Aqueles três brutamontes sentem, com razão, que os europeus são quase todos aliados dos adversários de Trump. E sabem que essa aliança entre americanos e europeus à esquerda de Trump – uma multidão imensa – tudo fará para os ridicularizar e perseguir.

Fica-nos mal fingirmos que fomos surpreendidos, quando, na verdade, ficámos mais do que satisfeitos: confirmou-se o que pensávamos deles.

Fazemos bem em odiá-los. Mas também temos de deixar que eles nos odeiem também.

 

(Transcrito do PÚBLICO)

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