Batom vermelho: mais uma desonestidade intelectual da extrema direita

No Alabama segregado de 1955, uma costureira negra chamada Rosa Parks tomou o ônibus de sempre, sentou-se na fileira costumeira, mas fez o incomum: recusou-se a ceder seu lugar a um homem branco. Seu corpo quieto dizia o bastante. A prisão veio como resposta, e a resistência ganhou um símbolo. Rosa não pegou em armas, não invadiu prédios, não quebrou vidros. Rosa enfrentou um sistema com a dignidade dos que sabem a injustiça que carregam nas costas. Avancemos quase 70 anos e cruzemos o hemisfério até Brasília, onde uma cabeleireira chamada Débora Rodrigues dos Santos escreveu com batom vermelho “Perdeu, mané” na estátua da Justiça, enquanto o Congresso era invadido, o Supremo depredado e o Palácio do Planalto vandalizado. Em comum com Rosa Parks, NADA!

A tentativa de elevar Débora ao panteão dos atos de resistência pacífica é uma desonestidade intelectual, retorcida e perigosa. E essa manipulação tem um nome e sobrenome: Nikolas Ferreira. O deputado, ao publicar um vídeo nas redes, sugere que a punição a Débora é por “pichar com batom”, como se o Estado estivesse agindo com excesso ao criminalizar um gesto simbólico de protesto. Nada mais distante da realidade. Débora não foi acusada por vandalismo isolado. Ela responde por associação criminosa, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, dano qualificado ao patrimônio público, entre outros crimes tipificados no Código Penal. O batom é apenas um fragmento – dramático, sim – de uma engrenagem maior e muito mais grave.

É necessário desfazer esse mito com firmeza: os atos de 8 de janeiro não foram um protesto pacífico ou uma manifestação de indignação popular. Foram parte de um movimento golpista articulado, financiado e executado com o objetivo de subverter a democracia brasileira. Centenas de pessoas atravessaram o país com passagens custeadas, hospedaram-se em Brasília, vestiram-se com trajes que sinalizavam identidade de grupo e invadiram os prédios dos Três Poderes com uma só intenção: gerar o caos e forçar uma ruptura institucional. A maioria dos vídeos gravados pelos próprios golpistas comprovam esse planejamento: há falas sobre “tirar os ministros”, “intervenção militar”, “matar os traidores”. Não era sobre batom. Era sobre derrubar a Constituição.

Sob essa perspectiva, é preciso que o direito se manifeste com clareza. A Constituição de 1988, no artigo 5º, garante o direito à livre manifestação do pensamento. Mas esse direito não é absoluto. Ele não autoriza invasões, depredações, ameaças, tampouco tentativas de golpe. O direito à liberdade de expressão termina onde começa a incitação à violência e a prática de crimes. O STF já se manifestou em decisões recentes sobre a impossibilidade de se confundir “liberdade de manifestação” com “atos antidemocráticos”. Portanto, a acusação contra Débora está alinhada à interpretação constitucional da Suprema Corte, à jurisprudência consolidada e ao Código Penal. Não há perseguição. Há justiça.

Ao transformar a imagem de Débora numa alegoria romântica da resistência, Nikolas promove outra distorção: a vitimização dos réus pelos atos de 8 de janeiro. Não se trata de prender pessoas por opiniões. Trata-se de responsabilizar quem cruzou as fronteiras da legalidade e se aliou a uma tentativa de ruptura da ordem democrática. Essa confusão proposital entre o simbólico e o concreto, entre o gesto e o crime, é uma tática conhecida: minimizar a gravidade dos atos para construir uma nova narrativa pública. Quando se reduz o episódio à frase escrita com batom, se tenta apagar a destruição de obras de arte, o furto de armas, os documentos rasgados, as vidraças estilhaçadas, o risco às vidas humanas.

Importa também sublinhar: a decisão que transferiu Débora para prisão domiciliar foi fundamentada. O ministro Alexandre de Moraes acatou parecer da PGR que recomendava o benefício por ela ser mãe de crianças pequenas, sem antecedentes e por já estar presa há mais de um ano. Mesmo com a medida, ela continua respondendo ao processo, com tornozeleira eletrônica, restrições judiciais e obrigações legais. Não houve anistia. Houve respeito ao princípio da dignidade humana – um valor que o mesmo grupo que incita rupturas institucionais costuma ignorar quando convém.

Neste momento histórico, não podemos permitir que a história seja sequestrada por narrativas distorcidas. Rosa Parks não depredou, não ameaçou, não violou instituições. Rosa Parks desobedeceu uma ordem injusta. Já Débora cooperou com um movimento que queria a volta da injustiça. A memória das lutas sociais não pode ser usada como biombo para esconder crimes. Não se resiste à tirania tentando instaurar outra. Não se defende a liberdade atacando o voto popular. E não se escreve a verdade com batom sobre mármore – especialmente quando tudo ao redor está em chamas.

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