Família diz que paciente transplantada foi agredida por enfermeira

São Paulo — Uma enfermeira do Instituto do Coração (Incor) foi afastada da instituição após a família de Vitória Chaves da Silva, de 26 anos, paciente que passou por quatro transplantes de órgãos e morreu em fevereiro deste ano, denunciá-la por agressão. O episódio ocorreu, segundo a família, em 23 de agosto do ano passado.

Em um ofício encaminhado ao Ministério Público de São Paulo (MPSP) um mês depois, o diretor executivo do Incor, Fábio Nakandakare Kawamura, afirmou que o caso seria avaliado pela Comissão de Ética em Enfermagem da unidade, ligada à Faculdade de Medicina da USP.

“Com a conclusão da apuração preliminar […] que confirmou a existência de indícios suficientes de materialidade de falta disciplinar, foi deliberado o desligamento da colaboradora”, diz trecho do documento, obtido pela reportagem.

O diretor do Incor afirmou, na ocasião, que a agressão seria um caso “isolado”, mas que ainda assim contribuiu para a reavaliação de seus procedimentos assistenciais, “assim como nos treinamentos de seus colaboradores que trabalham diretamente com pacientes”.

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Foto de Vitória pouco antes de seu primeiro transplante, aos 6 anos

Foto tirada em 2016, após o segundo transplante de coração de Vitória
Mãe e filha no Instituto do Coração de São Paulo
Vitória aguarda pelo terceiro transplante de coração
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Foro tirada logo após o primeiro transplante de Vitória, quando ela tinha 6 anos

Arquivo Pessoal

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Foto de Vitória pouco antes de seu primeiro transplante, aos 6 anos

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Foto tirada em 2016, após o segundo transplante de coração de Vitória

Arquivo Pessoal

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Mãe e filha no Instituto do Coração de São Paulo

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Vitória aguarda pelo terceiro transplante de coração

Arquivo Pessoal

“O Instituto do Coração repudia com veemência qualquer tipo de violência, seja ela física, moral ou psicológica contra seus pacientes ou seus colaboradores e permanece em constante vigilância para coibir tais práticas”, ressaltou, ainda, no ofício.

Conforme revelado inicialmente pelo Metrópoles, Vitória é a mesma paciente que se tornou alvo de deboche por parte de estudantes de medicina que acompanhavam seu quadro no Incor pouco antes de sua morte. Em vídeo postado no TikTok, uma das alunas comenta, a respeito da raridade de uma pessoa ter passado por quatro transplantes: “Acha que tem sete vidas”.

Em relação à denúncia de agressão no Incor, a reportagem solicitou atualizações sobre a investigação do caso ao hospital, assim como ao MPSP. O espaço segue aberto para manifestações.

Agressão e maus-tratos

Vitória era acompanhada no Incor desde 2004. Sua última internação começou em 26 de maio de 2023 e durou até o dia em que morreu, em 28 de fevereiro deste ano — 11 dias após as estudantes de medicina zombarem da situação clínica da paciente. Em 23 de agosto de 2024, Vitória teria se envolvido em um conflito e, segundo a família, a enfermeira a agrediu.

Em 9 de outubro, o promotor Julimar Alexandro da Silva, da 6ª Promotoria da Luziânia (GO), encaminhou, em caráter de urgência, cópia de denúncia ao MPSP, no qual solicitou a apuração sobre a agressão física sofrida por Vitória, além de “outras situações de maus-tratos”, durante o período em que permaneceu internada no Incor.

Julimar acompanhou o tratamento de Vitória desde o início, contribuindo para que a jovem, residente na cidade goiana, pudesse fazer seu tratamento em São Paulo.

Os referidos maus-tratos mencionados pelo promotor no documento, como foi apurado pela reportagem, seriam gritos de algumas enfermeiras direcionados à paciente.

Registro da ocorrência

Na ocasião da agressão atribuída à profissional do Incor, a mãe de Vitória, Cláudia Aparecida da Rocha Chaves, registrou um boletim de ocorrência on-line. “Mas quando fui à delegacia para representar o caso não quiseram formalizar o BO, alegando que a Vitória era maior de idade e ela precisava fazer isso”, disse Cláudia.

A jovem, no entanto, estava internada e não tinha condições de se deslocar até a delegacia. “Aí me disseram que precisaria de uma procuração, mas o cartório cobrava um valor alto para ir até o hospital e a gente não tinha esse dinheiro.”.

Quando foi registrar o boletim de ocorrência contra as estudantes de medicina, que atualmente são investigadas por injúria, Cláudia tentou também formalizar a denúncia da agressão. “Mas o delegado [do 14º DP, Pinheiros] se negou”, acrescentou.

Deboche de alunas de medicina

O caso envolvendo as estudantes de medicina veio à tona esta semana, após o vídeo postado por uma delas viralizar e chegar até à família da paciente. Na gravação, apesar de não falarem o nome da jovem, as estudantes Gabrielli Farias de Souza e Thaís Caldeiras Soares Foffano mencionam os três transplantes cardíacos e indicam quando os procedimentos foram feitos — na infância, na adolescência e no início da maioridade, o que coincide com o quadro de Vitória.

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Vídeo foi tirado do ar

Alunas expuseram caso de paciente
Estudantes mencionam informações inverídicas, segundo família de paciente
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Uma das alunas chega a zombar da quantidade de transplantes aos quais Vitória foi submetida

Reprodução/TikTok

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Alunas expuseram caso de paciente

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Estudantes mencionam informações inverídicas, segundo família de paciente

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Reprodução/TikTok/Arquivo Pessoal

As estudantes comentam, no vídeo, que a paciente não havia tomado os remédios corretamente, razão pela qual teria sido submetida à sucessão de transplantes. Em certo momento, Thais afirma: “Essa menina está achando que tem sete vidas”.

Veja o vídeo:

A postagem, feita em 17 de fevereiro, foi visualizada por pouco mais de 212 mil pessoas. A repercussão do caso fez com que o vídeo fosse tirado do ar na terça-feira (8/4).

“Um transplante cardíaco já é burocrático, já é raro, tem a questão da fila de espera, da compatibilidade, mil questões envolvidas… Agora, uma pessoa passar por um transplante três vezes, isso é real e aconteceu aqui no Incor e essa paciente está internada aqui”, afirma Thaís no vídeo.

Na postagem, Thaís ainda comenta que ela e a colega iriam se encontrar com Vitória em seguida. “A gente vai subir lá em cima [sic] e tentar conversar com essa paciente transplantada por três vezes.”

Antes do encontro, Gabrielli dá detalhes dos procedimentos aos quais Vitória foi submetida. “A segunda vez ela transplantou e não tomou os remédios que deveria tomar, o corpo rejeitou [o órgão] e teve que transplantar de novo, por um erro dela [Vitória]. Agora ela transplantou de novo, [o corpo] aceitou, mas o rim não lidou bem com as medicações.” É nesse momento que Thaís afirma que a paciente “acha que tem sete vidas”.

Vitória morreu nove dias depois do vídeo, devido a um choque séptico e insuficiência renal crônica. A morte ocorreu um ano após o terceiro transplante de coração e dois anos depois de um transplante de rim, órgão que ficou comprometido durante o tratamento cardíaco da jovem.

Família contesta declarações

Cláudia, mãe de Vitória, contestou as declarações das estudantes. “O que elas dizem é inverídico e temos provas de tudo, de que ela [Vitória] seguia o tratamento à risca”, diz a mãe.

“A gente sempre acompanhou a Vitória. A gente sabia o quanto ela lutava para viver, né? Tanto é que tem um monte de ofício na promotoria de a gente pedindo ajuda com medicação, com passagem para vir no tratamento. Ela nunca faltou a uma consulta sequer, né? E minha filha tinha sede de vida. Tudo o que ela queria era viver. Aí vem uma pessoa e diminui a história dela, eu não aceito, quero Justiça”, desabafou Cláudia.

Após o episódio, a mãe registrou um boletim de ocorrência e acionou o Ministério Público de São Paulo (MPSP).

Segundo a Secretaria da Segurança Pública (SSP), o caso é investigado como injúria por meio de inquérito policial instaurado pelo 14° Distrito Policial (Pinheiros). “A mãe da vítima foi ouvida e as diligências seguem visando o devido esclarecimento dos fatos, bem como a responsabilização dos envolvidos”, informou a pasta.

O que dizem as estudantes

As estudantes Gabrielli Farias de Souza e Thaís Caldeira Soares Foffano se posicionaram sobre o caso na tarde dessa quarta-feira (9/4). Em uma nota de defesa, as estudantes afirmam que o conteúdo divulgado no TikTok “teve como única intenção expressar surpresa diante de um caso clínico mencionado no ambiente de estágio”.

As alunas disseram ainda que a raridade da situação despertou a “curiosidade acadêmica” e as fez refletir sobre aspectos técnicos inéditos, proporcionados pela condição clínica de Vitória.

Gabrielli e Thaís, segue o comunicado, não tiveram acesso ao prontuário da paciente. “Não sabíamos quem era”. Além disso, ambas reforçaram não terem divulgado nenhuma imagem da paciente.

As estudantes negaram “qualquer deboche ou insensibilidade”. “Nosso compromisso com a vida, a dignidade humana e os princípios éticos da medicina permanece inabalável”, ressaltaram.

Gabrielli e Thaís manifestaram solidariedade à família de Vitória e afirmaram que estão tomando providências para esclarecer o caso e preservar suas integridades pessoais, acadêmicas e emocionais.

O que dizem Incor e USP

Em nota encaminhada à reportagem, o Incor afirmou não divulgar dados de pacientes. A instituição afirmou, ainda, repudiar “veementemente” atitudes que violem os princípios da ética e confidencialidade. O instituto acrescentou que apura “rigorosamente o caso mencionado”, ressaltando que “adotará todas as medidas cabíveis”.

Procurada, a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) disse que as alunas atualmente não têm qualquer vínculo acadêmico com a universidade ou com o Incor. As estudantes estavam no hospital em função de um curso de extensão de curta duração (um mês). “Assim que foi tomado conhecimento do fato, as universidades de origem das estudantes foram notificadas para que possam tomar as providências cabíveis”, diz nota.

“Internamente, a USP está tomando medidas adicionais para reforçar junto aos participantes de cursos de extensão as orientações formais sobre conduta ética e uso responsável das redes sociais, além da assinatura de um termo de compromisso com os princípios de respeito aos pacientes e aos valores que regem a atuação da instituição”, completa o texto.

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