Mãe de paciente zombada por estudantes diz que não consegue viver luto

São Paulo – Vitória Chaves da Silva morreu em 28 de fevereiro deste ano e, desde então, a sua mãe não consegue viver o luto pela perda da filha mais velha, de 26 anos.

Isso porque, três dias depois, um amigo da jovem mandou mensagem, indicando que duas estudantes de medicina estavam expondo Vitória, além de debochar da situação clínica dela — que havia sido submetida a três transplantes cardíacos.

“Estou tão fragilizada, desesperada desde que veio essa notícia do TikTok das alunas [de medicina]. Não sei o que é dormir desde então. Estou tendo crises de ansiedade, de pânico. Começo a chorar, sinto vontade de gritar, tudo o que eu queria era ficar quietinha, sofrendo, lembrando da minha filha. Viver o luto”, afirmou Cláudia à reportagem, com a voz embargada.

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Foto de Vitória pouco antes de seu primeiro transplante, aos 6 anos

Foto tirada em 2016, após o segundo transplante de coração de Vitória
Mãe e filha no Instituto do Coração de São Paulo
Vitória aguarda pelo terceiro transplante de coração
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Foro tirada logo após o primeiro transplante de Vitória, quando ela tinha 6 anos

Arquivo Pessoal

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Foto de Vitória pouco antes de seu primeiro transplante, aos 6 anos

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Foto tirada em 2016, após o segundo transplante de coração de Vitória

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Mãe e filha no Instituto do Coração de São Paulo

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Vitória aguarda pelo terceiro transplante de coração

Arquivo Pessoal

Cláudia morava com Vitória e mais duas filhas em Luziânia,  no estado de Goiás, de onde viajava com constância para São Paulo, onde Vitória fazia tratamento no Instituto do Coração (Incor), da Faculdade de Medicina da USP, e também onde morreu em decorrência de uma insuficiência renal.

Atualmente a mãe de Vitória permanece em São Paulo, junto com a filha do meio, a Giovana, que ajuda e acompanha a mãe a cobrar uma retratação pública das estudantes Gabrielli Farias de Souza e Thaís Caldeira Soares Foffano. Como revelou o Metrópoles, elas gravaram e compartilharam um vídeo no TikTok, 11 dias antes da morte da paciente, no qual insinuam uma suposta negligência de Vitória em seu tratamento.

“Não tive a paz de ter meu luto ainda, é tudo o que eu queria agora, paz, e não estou tendo por causa das duas alunas. A minha rotina mudou toda porque comecei a ir atrás de justiça, porque o que elas fizeram com a minha filha é injúria. A Vitória era uma menina dedicada, tomava os remédios certinho”.

Em uma carta deixada para familiares Vitória expôs seu desejo de ser sepultada em Luziânia, em um túmulo só dela, perto do jazido de um tio do qual gostava muito. As cinzas da jovem, porém, ainda estão em São Paulo, com a mãe e a irmã mais nova. O pedido de Vitória só será concretizado após a família solucionar o transtorno decorrido do vídeo compartilhado no TikTok, que foi tirado do ar após a repercussão do caso.

Viagens de 34 horas

Para garantir que a filha tomasse os remédios, obrigatórios às pessoas submetidas a transplantes de órgãos, Cláudia chegou a encarar 34 horas de viagem, dentro de um ônibus, entre Goiás e a capital paulista –somando a ida e a volta.

Por ser de uma família simples, Cláudia apelava para o Ministério Público de Luziânia (GO), que garantia, por meio de requerimentos, a compra de remédios, assim como a viabilização dos deslocamentos interestaduais, hospedagem e alimentação — nos períodos nos quais Vitória permaneceu no Incor.

Em entrevista exclusiva ao Metrópoles, o promotor de Justiça Julimar Alexandro da Silva, da 6ª Promotoria de Luziânia, afirmou que ajudou a viabilizar o tratamento de Vitória, ressaltando que “nunca houve negligência” no tratamento da jovem.

“Gostaria de ressaltar a luta da Cláudia em relação à filha. Tínhamos contato com ela há mais de 10 anos. De lá para cá, a Cláudia fez tudo o que podia, nunca vi uma mãe lutar tanto como ela lutou. Mesmo com muitas barreiras burocráticas, nunca largou a filha. A Vitória sempre ia à Promotoria com a Cláudia. A Vitória demonstrou grande garra para sobreviver, nunca deixou de tomar remédios. Não houve negligência nem da parte dela, nem da mãe, pelo contrário”.

Houve casos, emergenciais, nos quais até um avião foi viabilizado, em parceria com o município, para transportar o medicamento, o ainda levar Vitória para o tratamento em São Paulo. A jovem morreu, de insuficiência renal, 11 dias após o compartilhamento do vídeo das alunas de medicina.

O caso de injúria

Vitória foi submetida a três transplantes de coração e, também, um de rim. O ineditismo das três cirurgias foi comentado em um vídeo, como revelou o Metrópoles, por Gabrielli Farias de Souza e Thaís Caldeira Soares Foffano.

Gabrielli afirmou no registro que a paciente “não tomou os remédios que deveria tomar” e Thaís comentou, no mesmo vídeo: “essa menina está achando que tem sete vidas”. Ambas são investigadas pela Polícia Civil por injúria, por conta da postagem compartilhada e, após a repercussão, retirada do TikTok.

Os comentários das estudantes abalaram a família de Vitória. Além de encarar milhares de quilômetros, para garantir a continuidade do tratamento e, com isso, aumentar a sobrevida da filha, Cláudia também encarava maratonas burocráticas, para conseguir apoio governamental à filha.

“A Vitória era uma menina dedicada, tomava os remédios certinho, e veio a acontecer alguma coisa com os órgãos dela, questão do tempo da sobrevida do transplante, mas não por falta de cuidado de minha filha”, afirmou Cláudia, se referindo à morte da filha.

O Metrópoles apurou que, ao menos desde 2016, a Promotoria de Luziânia instaurou procedimentos garantindo o custeio do tratamento da jovem. Ela tomava sete tipos de medicação, seis deles em comprimido e outro líquido, por via oral.

Agressão e maus-tratos

Vitória era acompanhada no Incor desde 2004. Sua última internação começou em 26 de maio de 2023 e durou até o dia em que morreu, em 28 de fevereiro deste ano . Em 23 de agosto de 2024, Vitória teria se envolvido em um conflito e, segundo a família, uma enfermeira a agrediu.

Em 9 de outubro, o promotor Julimar Alexandro da Silva encaminhou, em caráter de urgência, cópia de denúncia ao Ministério Público de São Paulo (MPSP) e solicitou a apuração sobre a agressão física sofrida por Vitória, além de “outras situações de maus-tratos”, durante o período em que ela permaneceu internada no Incor.

Julimar acompanhou o tratamento de Vitória desde o início, contribuindo para que a jovem, residente na cidade goiana, pudesse fazer seu tratamento em São Paulo.

Os referidos maus-tratos mencionados pelo promotor no documento, como foi apurado pela reportagem, seriam gritos de algumas enfermeiras direcionados à paciente.

Registro da ocorrência

Na ocasião da agressão atribuída à profissional do Incor, a mãe de Vitória, Cláudia Aparecida da Rocha Chaves, registrou um boletim de ocorrência on-line. “Mas, quando fui à delegacia para representar o caso, não quiseram formalizar o B.O., alegando que a Vitória era maior de idade e ela precisava fazer isso”, disse Cláudia.

A jovem, no entanto, estava internada e não tinha condições de se deslocar até a delegacia. “Aí, me disseram que precisaria de uma procuração, mas o cartório cobrava um valor alto para ir até o hospital e a gente não tinha esse dinheiro.”

Quando foi registrar o boletim de ocorrência contra as estudantes de medicina, que atualmente são investigadas por injúria, Cláudia tentou também formalizar a denúncia da agressão. “Mas o delegado [do 14º DP, Pinheiros] se negou”, acrescentou.

Deboche de alunas de medicina

O caso envolvendo as estudantes de medicina veio à tona esta semana, após o vídeo postado por uma delas viralizar e chegar à família da paciente. Na gravação, apesar de não falarem o nome da jovem, as estudantes Gabrielli Farias de Souza e Thaís Caldeiras Soares Foffano mencionam os três transplantes cardíacos e indicam quando os procedimentos foram feitos — na infância, na adolescência e no início da maioridade, o que coincide com o quadro de Vitória.

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Alunas expuseram caso de paciente
Estudantes mencionam informações inverídicas, segundo família de paciente
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Uma das alunas chega a zombar da quantidade de transplantes aos quais Vitória foi submetida

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Alunas expuseram caso de paciente

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Estudantes mencionam informações inverídicas, segundo família de paciente

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Reprodução/TikTok/Arquivo Pessoal

As estudantes comentam, no vídeo, que a paciente não havia tomado os remédios corretamente, razão pela qual teria sido submetida à sucessão de transplantes. Em certo momento, Thais afirma: “Essa menina está achando que tem sete vidas”.

Veja o vídeo:

A postagem, feita em 17 de fevereiro, foi visualizada por pouco mais de 212 mil pessoas. A repercussão do caso fez com que o vídeo fosse tirado do ar na última terça-feira (8/4).

“Um transplante cardíaco já é burocrático, já é raro, tem a questão da fila de espera, da compatibilidade, mil questões envolvidas… Agora, uma pessoa passar por um transplante três vezes, isso é real e aconteceu aqui no Incor e essa paciente está internada aqui”, afirma Thaís no vídeo.

Na postagem, Thaís ainda comenta que ela e a colega iriam se encontrar com Vitória em seguida. “A gente vai subir lá em cima [sic] e tentar conversar com essa paciente transplantada por três vezes.”

Antes do encontro, Gabrielli dá detalhes dos procedimentos aos quais Vitória foi submetida. “A segunda vez ela transplantou e não tomou os remédios que deveria tomar, o corpo rejeitou [o órgão] e teve que transplantar de novo, por um erro dela [Vitória]. Agora ela transplantou de novo, [o corpo] aceitou, mas o rim não lidou bem com as medicações.” É nesse momento que Thaís afirma que a paciente “acha que tem sete vidas”.

Vitória morreu nove dias depois do vídeo, devido a um choque séptico e à insuficiência renal crônica. A morte ocorreu um ano após o terceiro transplante de coração e dois anos depois de um transplante de rim, órgão que ficou comprometido durante o tratamento cardíaco da jovem.

Família contesta declarações

Cláudia, mãe de Vitória, contestou as declarações das estudantes. “O que elas dizem é inverídico e temos provas de tudo, de que ela [Vitória] seguia o tratamento à risca”, diz a mãe.

“A gente sempre acompanhou a Vitória. A gente sabia o quanto ela lutava para viver, né? Tanto é que tem um monte de ofício na promotoria de a gente pedindo ajuda com medicação, com passagem para vir no tratamento. Ela nunca faltou a uma consulta sequer, né? E minha filha tinha sede de vida. Tudo o que ela queria era viver. Aí vem uma pessoa e diminui a história dela, eu não aceito, quero Justiça”, desabafou Cláudia.

Após o episódio, a mãe registrou um boletim de ocorrência e acionou o Ministério Público de São Paulo (MPSP).

Segundo a Secretaria da Segurança Pública (SSP), o caso é investigado como injúria por meio de inquérito policial instaurado pelo 14º Distrito Policial (Pinheiros). “A mãe da vítima foi ouvida e as diligências seguem visando o devido esclarecimento dos fatos, bem como a responsabilização dos envolvidos”, informou a pasta.

O que dizem as estudantes

As estudantes Gabrielli Farias de Souza e Thaís Caldeira Soares Foffano se posicionaram sobre o caso na tarde dessa quarta-feira (9/4). Em uma nota de defesa, as estudantes afirmam que o conteúdo divulgado no TikTok “teve como única intenção expressar surpresa diante de um caso clínico mencionado no ambiente de estágio”.

As alunas disseram ainda que a raridade da situação despertou a “curiosidade acadêmica” e as fez refletir sobre aspectos técnicos inéditos, proporcionados pela condição clínica de Vitória.

Gabrielli e Thaís não tiveram acesso ao prontuário da paciente, segundo o comunicado. “Não sabíamos quem era.” Além disso, ambas reforçaram não terem divulgado qualquer imagem da paciente.

As estudantes negaram “qualquer deboche ou insensibilidade”. “Nosso compromisso com a vida, a dignidade humana e os princípios éticos da medicina permanece inabalável”, ressaltaram.

Por fim, Gabrielli e Thaís manifestaram solidariedade à família de Vitória e afirmaram que estão tomando providências para esclarecer o caso e preservar suas integridades pessoais, acadêmicas e emocionais.

O que dizem Incor e USP

Em nota encaminhada à reportagem, o Incor declarou que não divulga dados de pacientes. A instituição afirmou, ainda, repudiar “veementemente” atitudes que violem os princípios da ética e confidencialidade. O instituto acrescentou que apura “rigorosamente o caso mencionado”, ressaltando que “adotará todas as medidas cabíveis”.

Procurada, a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) disse que as alunas atualmente não têm qualquer vínculo acadêmico com a universidade ou com o Incor. As estudantes estavam no hospital em função de um curso de extensão de curta duração (um mês). “Assim que foi tomado conhecimento do fato, as universidades de origem das estudantes foram notificadas para que possam tomar as providências cabíveis”, diz nota.

“Internamente, a USP está tomando medidas adicionais para reforçar junto aos participantes de cursos de extensão as orientações formais sobre conduta ética e uso responsável das redes sociais, além da assinatura de um termo de compromisso com os princípios de respeito aos pacientes e aos valores que regem a atuação da instituição”, completa o texto.

 

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