Existe “epidemia” de autismo nos EUA? Especialistas explicam cenário

O crescimento no índice de diagnósticos de Transtorno do Espectro Autista (TEA) nos EUA levou o Departamento de Saúde e Serviços Humanos (HHS) do país a encomendar um estudo para determinar até setembro “o que causou a epidemia de autismo” no país, segundo afirmou o secretário de Saúde Robert F. Kennedy Jr. na última quinta-feira.

Segundo Kennedy, após um esforço massivo de testes e pesquisa será possível identificar e eliminar “o que causou esta epidemia”.

“O Instituto Nacional de Saúde está totalmente comprometido em não deixar pedra sobre pedra no enfrentamento dessa epidemia catastrófica – empregando apenas ciência de alto nível e baseada em evidências”, disse o diretor de comunicações do departamento de saúde americano, Andrew Nixon.

O número de diagnósticos de autismo nos EUA vem aumentando há décadas. Cerca de 1 em cada 36 crianças foi identificada com transtornos do espectro autista em 2020 – um salto em relação a 2000, quando a taxa era de 1 a cada 150 crianças, de acordo com dados dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos EUA.

Contudo, a tese de que existe uma “epidemia de autismo” nos EUA e de que seria possível identificar suas causas em poucos meses ante décadas de pesquisa médica é refutada por especialistas na área.

O termo “epidemia” é usado de forma estatística e epidemiológica quando há um aumento de casos de um transtorno ou doença, não limitado a uma patologia infecciosa.

No entanto, no caso do TEA, o aumento da quantidade de diagnósticos pode estar, na verdade, associado à melhor notificação do transtorno, dizem especialistas.

O neurocientista cognitivo e especialista em autismo da Universidade de Oxford e da University College London, Geoff Bird, ainda defende que “a ideia de que podemos descobrir as causas repentinamente até setembro não é realista.”

O que causa o autismo?

Segundo a literatura médica, o transtorno do espectro autista decorre de alterações no desenvolvimento do cérebro durante o início da vida. De acordo com Bird, é consenso que cerca de 80% dos casos de autismo podem estar ligados a mutações genéticas hereditárias, ainda que a causa exata do transtorno ainda não foi exaustivamente identificada.

Os cientistas já identificaram que mutações em determinados genes, como o MECP2, afetam a estrutura e conectividade dos neurônios, mas a evidência de que estas alterações estejam diretamente ligadas ao autismo não é clara.

Os cientistas também estão investigando se fatores como poluentes, alterações no eixo intestino-cérebro ou no sistema imunológico podem ter um efeito direto sobre o neurodesenvolvimento e o autismo.

No entanto, Bird defende que as evidências sobre essas teorias “não são convincentes”. “Sem dúvida, os poluentes fazem mal, mas eu ficaria surpreso se eles estivessem aumentando as taxas de autismo”, disse ele.

Conscientização sobre o autismo e qualidade do diagnóstico

“O diagnóstico do autismo sempre foi o maior desafio na pesquisa, porque não temos um marcador biológico do espectro do transtorno autista”, disse Bird à DW. Ou seja, não é possível diagnosticar um paciente apenas pesquisando alterações celulares e moleculares, por exemplo.

Segundo o neurologista, porém, apesar dos desafios, a evolução das definições clínicas e sociais desde que o autismo foi descrito pela primeira vez há 80 anos ajuda a explicar o aumento dos diagnósticos nos EUA.

“Agora é comum diagnosticar pessoas com sinais muito mais sutis, o que explica parte do aumento da prevalência”, disse Bird.

As mudanças nos métodos de triagem também ajudaram os especialistas a detectar sinais de autismo em meninas com mais frequência.

“O autismo era definido principalmente pela forma como se apresentava em meninos, e os diagnósticos de meninas se ajustavam a isso. Agora estamos expandindo os critérios para levar em conta as representações femininas”, disse Bird. “A consequência natural é o aumento da prevalência do autismo.”

O movimento da neurodiversidade também contribuiu para critérios diagnósticos mais amplos e precoces. Os movimentos de conscientização sobre o autismo ajudaram as pessoas a entender como suas próprias experiências podem não ser neurotípicas.

“A conscientização provavelmente aumentou o número de pessoas que procuram uma avaliação e um diagnóstico e, portanto, podem se sentir aliviadas quando encontram respostas e possíveis próximos passos”, disse Suzy Yardley, CEO da ONG Child Autism UK.

Vacinas não causam autismo

A alegação de que as vacinas estão por trás do aumento das taxas de autismo também tem sido repetidamente refutada.

Nas últimas duas décadas, cientistas realizaram estudos rigorosos e em larga escala para determinar se algum aspecto da vacinação poderia causar autismo. Nenhum deles mostrou qualquer ligação entre o desenvolvimento do espectro autista e os imunizantes administrados durante a gravidez ou após o nascimento.

“Não foi encontrada nenhuma ligação entre o autismo e as vacinas, incluindo aquelas que contêm timerosal, um composto à base de mercúrio”, afirma o Instituto Nacional de Saúde (NIH) dos EUA.

A falsa alegação de que as vacinas causam autismo se baseia em um estudo publicado em 1998 que sugeria uma ligação entre a vacina contra sarampo, caxumba e rubéola, a vacina tríplice viral (MMR) e problemas no desenvolvimento do cérebro. Posteriormente, pares identificaram que o estudo continha erros graves e ele foi retirado.

No mês passado, o CDC iniciou um estudo para identificar possíveis ligações entre as vacinas e o autismo, apesar de pesquisas anteriores da própria agência indicarem que esta ligação não existe.

Em 2022, Kennedy chegou a dizer que “nenhuma vacina é segura e efetiva”, mas passou a recusar o título de “ativista antivacina” ao ser indicado para o cargo na Saúde.

O secretário também minimizou um surto de sarampo no Texas que infectou 500 pessoas e matou duas crianças não vacinadas neste ano.

“Golpe publicitário”

Defensores da comunidade do autismo receberam o anúncio de RFK Jr. com ceticismo. A Associação Nacional do Autismo do Reino Unido chamou a afirmação de Kennedy de um “golpe publicitário de notícias falsas”.

“Estamos surpresos com a maneira insensível e anticientífica com que Trump e RFK Jr. falam sobre as pessoas autistas”, disse Tim Nicholls, diretor assistente de política, pesquisa e estratégia da Associação Nacional do Autismo do Reino Unido.

“Não seria melhor se eles pudessem empregar seus recursos financeiros para melhorar a vida das pessoas autistas e de suas famílias, e melhorar a compreensão da sociedade sobre o autismo?”

Bird acredita que “tensões” na maneira como as pessoas pensam e pesquisam o autismo são comuns, principalmente quando se trata da ideia de reduzi-lo ou eliminá-lo. Alguns grupos argumentam que o autismo não é uma doença e “portanto, não há nada para ser ‘curado’”, disse Yardley, da Child Autism UK, à DW.

Mas outros entendem que aqueles que defendem que o autismo não é um distúrbio “superam as vozes de um grande número de pessoas com autismo que sentem que suas vidas foram afetadas negativamente”, defende Bird.

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