Os jornais e os dentes de uma atriz britânica (por Bárbara Reis)

Como a notícia estava no “meu” jornal, segui caminho – não me cabe a mim comentar as opções dos meus colegas. Ao ver que o New York Times publicou uma notícia sobre o mesmo assunto, percebi que a história teve repercussão à escala, senão planetária, pelo menos ocidental.

Por outras palavras: o problema é geral.

O New York Times diz que “Wood, estrela da série The White Lotus, da HBO, criticou o Saturday Night Live por causa de um sketch que gozou com o seu sorriso”, tendo a actriz escrito no Instagram que o sketch “é mau e não tem piada”. Wood diz que não é uma “flor de estufa” e até “adora ser alvo de piadas”, mas só quando as piadas “são inteligentes” e “têm sentido de humor”, qualidades que não detectou na piada sobre os seus dentes.

Wood explica: “A piada do Saturday Night Live era sobre flúor. Eu tenho dentes grandes, não tenho dentes com problemas.” A atriz britânica quer rigor nas piadas e só acha graça quando a piada é fiel à realidade. Se tivesse dentes a precisar de flúor, ter-se-ia rido. Como não precisa de flúor, não se riu.

Wood, que tem 31 anos, ficou famosa com o seu papel na série de televisão Sex Education, criada para a Netflix, descrita na Wikipédia como “a British teen sex comedy drama” – só conheço miúdos que acham a série maçadora, mas a intenção é que faça rir e daí a palavra “comédia” no auto-retrato.

A questão é que, noutra vida, não seria preciso explicar o que é humor a uma actriz que faz uma série definida como humorística.

Já nesta vida, dominada pelo politicamente correcto, a queixa de Wood foi notícia nos jornais de referência.

O Guardian foi mais longe e, além da notícia, publicou um artigo de opinião no qual uma humorista britânica, Athena Kugblenu, explica as razões pelas quais a piada dos humoristas americanos sobre Wood não tem graça: 1) “O flúor é um mineral natural que é adicionado à pasta de dentes e à água porque ajuda a manter os dentes saudáveis”, pelo que “a premissa da piada é que os dentes de Wood não são saudáveis, o que não é de todo o caso” e, por isso, a piada “é desonesta”; e 2) “Se os britânicos têm dentes ‘maus’, não é por falta de flúor. É por causa de um Serviço Nacional de Saúde que fornece medicina dentária através de contratos complicados e inadequados. É mais fácil encontrar alguém que nos faça um check-up gratuito à nossa saúde intestinal do que encontrar alguém que nos examine a boca.”

Kugblenu repete a bizarra tese de que o humor só tem graça quando descreve a realidade de forma literal e acrescenta outro argumento sem sentido, ignorando que Wood tem dois milhões de dólares, pelo que, se quisesse, teria acesso ao melhor dentista do Reino Unido.

Como dizer isto? Os dentes de Wood são invulgarmente virados para fora. São o tipo de dentes que as pessoas tendem a corrigir. Não é de agora. É de sempre. No Egipto Antigo, na Roma Antiga e na Grécia Antiga as pessoas usavam fios de ouro ou de intestino de ovelha para endireitar os dentes. Hoje pomos aparelhos nos dentes num misto de preocupação estética e tentativa de tornar a mordedura mais eficaz – é difícil cortar um alimento duro se os dentes de cima não encaixam nos de baixo.

Não sei se antes de Cristo os motivos eram iguais. Sei que Wood gosta de ter os dentes saídos e que essa é uma marca da sua persona, entre o sexy rebelde, o cool não convencional e o “sou como sou, rejeito artifícios”. Tudo óptimo.

O “problema” jornalístico é outro: os jornais de referência não encontraram solução para publicar os fait-divers na era digital.

No site, no fim do texto do New York Times, o jornal informa que “uma versão deste artigo apareceu na edição impressa de 15 de Abril, Secção C, página 4, com o título Actress Criticizes Sketch”. Talvez na edição em papel a “notícia” assuma visualmente o que há uns anos se “arrumava” na secção “Pessoas”, um espaço que era um misto de fait-divers da vida das celebridades, com notas mais ou menos relevantes, curiosidades picantes, casamentos, divórcios e quem-vestiu-o-quê-em-que-festa, mais mexericos e alfinetadas.

Com isso, os jornais “sérios” piscavam o olho ao leitor, tentando mostrar que não eram elitistas ao ponto de ignorar o sétimo casamento de Elizabeth Taylor. A lógica era evidente: as pessoas vão querer saber estas coisas, porque não lê-las no “seu” jornal? Lia-se sobre a guerra, o parlamento, a greve, o novo livro, o obituário e, algures a seguir a tudo isso, muitas vezes ao pé dos jogos e palavras cruzadas, havia pequenas histórias de famosos.

Não digo que os fait-divers devem desaparecer dos jornais de referência. Não são tão antigos como os correctores de dentes, mas são tão velhos como os jornais e continuam a ter o seu lugar. O problema é que hoje a distinção tornou-se invisível na leitura online, na qual tudo parece ter a mesma importância e, na ausência de uma hierarquia clara, essencial e acessório diluem-se.

Esta é a hipótese benigna de olhar para isto.

A outra hipótese é pior: é possível que a história da reação a piada do Saturday Night Live não seja vista como um fait-divers, mas como uma notícia importante. Nesse caso, a conversa é outra. Se assim for, o problema não é só geral. É geral e sério.

 

(Transcrito do PÚBLICO)

Adicionar aos favoritos o Link permanente.