Francisco começou a enfrentar a “organização gay” dentro da Igreja

Eu estava na Praça de Pedro, sob a chuva que caía naquele começo de noite, quando o argentino Jorge Mario Bergoglio assomou à sacada da Basílica de São Pedro para ser anunciado como Papa Francisco.

Fiquei espantado: um jesuíta da América Latina havia sido eleito por um colégio eleitoral composto por uma maioria de cardeais escolhidos pelos conservadores João Paulo II e Bento XVI. O Espírito Santo havia soprado aos ouvidos cardinalícios o nome de um outsider. Deus, portanto, parecia disposto a mudar tudo.

Doze anos depois, a conclusão que se pode tirar do pontificado de Francisco é que, como não ocorrem milagres na estrutura da Igreja Católica, ele apenas começou uma longa obra de limpeza na Santa Madre, sem garantia de que ela vá ser continuada por seu sucessor, embora isso seja essencial para a própria sobrevivência do catolicismo. A obra de limpeza é contra a pedofilia eclesiástica, que contamina dos seminários às sacristias, dos orfanatos às escolas católicas.

João Paulo II fez vista grossa ao problema, mais preocupado que estava em derrotar o comunismo na Europa e, ato contínuo, em exterminar a Teologia da Libertação na América Latina.

Bento XVI assumiu pronto a enfrentar a situação cada vez mais escandalosa, mas não tinha nem o perfil, nem a energia para tanto. Renunciou logo depois da sua viagem a Cuba, mortificado porque descobriu in loco que o cardeal Jaime Ortega, com quem tinha uma ligação especial, encobria as porcarias pedófilas cometidas pelos bispos cubanos — que também acolhiam turistas sexuais provenientes do Vaticano, atraídos pela prostituição de garotos na ilha comunista.

A tarefa estava destinada a ser iniciada pelo Papa Francisco. Ele entendeu que a pedofilia era a ferida mais grave da Igreja Católica, infinitamente pior do que a corrupção financeira revelada pelo Vatileaks. Francisco verificou que essa chaga é mantida aberta por padres, bispos e cardeais homossexuais que se protegem uns aos outros.

Ao longo do seu pontificado, o papa censurou, puniu e afastou, sem perdão, agressores de crianças e adolescentes nos diferentes níveis hierárquicos. Abordou o assunto corajosamente e confiou ao escritor e jornalista francês Fréderic Martel que “a homossexualidade no clero é uma questão muito séria que me preocupa”. Disse ainda que “atrás da rigidez, há sempre algo escondido: em numerosos casos, uma vida dupla”.

Já escrevi algumas vezes sobre o livro de Frédéric Martel, Sodoma — Investigação no Coração do Vaticano, não me lembro se também nesta encarnação como colunista do Metrópoles. Ser repetitivo pode ser uma virtude: a morte do Papa Francisco torna a leitura do livro ainda mais obrigatória para quem se interessa sobre os assuntos da Santa Madre.

Fréderic Martel, ele próprio homossexual, expôs o segredo de Polichinelo de que “o Vaticano é uma organização gay”. Uma organização alicerçada, ao longo dos séculos, sobre o celibato dos padres, a misoginia clerical, a cultura do segredo e a escassez das vocações sacerdotais.

O celibato dos padres está na origem de tudo. Fez com que a a Igreja Católica se tornasse refúgio de homens que viram nela um caminho para fugir a pressões familiares e sociais e esconder a sua sexualidade, mas sem renunciar a ela e dando-lhe contornos de perversão.

Como aponta Frédéric Martel, construiu-se, assim, um sistema esquizofrênico, no qual convivem a homossexualidade e a homofobia mais radical — daí a frase de Francisco sobra a rigidez encobridora da realidade, tanto no nível pessoal, como no nível doutrinário. Como o escritor e jornalista francês resumiu, “quanto mais um prelado é homofóbico em público, mais é provável que ele seja homossexual na sua vida privada”.

Em maio do ano passado, em uma reunião a portas fechadas com bispos italianos, Francisco recomendou que não se admitissem mais candidatos a padres declaradamente gays. Ele disse que já havia “bichice demais” nos seminários. Um desabafo que deve ser entendido no contexto do problema que ele se dispôs a solucionar, não inteiramente como fruto de preconceito. Vamos lembrar que, apesar da posição dogmática contra o casamento gay, Francisco permitiu que padres católicos abençoassem casais do mesmo sexo.

Para fazer jus ao seu predecessor, o próximo papa teria de dar prosseguimento às ações saneadoras contra padres, bispos e cardeais pedófilos ou que usam o poder da batina para abusar sexualmente de subordinados.

Ele teria de ter coragem de ir além de Francisco. A coragem de dar fim ao celibato dos padres, de permitir a ordenação de mulheres — e de reconhecer a legitimidade das uniões gays, porque gays livres para viver a sua sexualidade e o seu amor implicam uma Igreja livre de gays criminosos.

O grande embate no catolicismo não é entre progressistas e conservadores. É entre gente que aceita ou não ser cúmplice da podridão pedófila.

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