Itinerários do teatro negro

As luzes se acendem. No palco, a ditadura caça atrizes e atores negros que contestam a desigualdade. As luzes se apagam. A discriminação paira sobre o silêncio e a escuridão. O palco se ilumina novamente, são tempos democráticos, mas as políticas culturais atadas ao mercado amordaçam discursos. Como se vê, o Estado e o racismo são personagens onipresentes no teatro negro no Brasil.

Os caminhos de uma dramaturgia afrobrasileira foram iniciados pelo Teatro Experimental do Negro, capitaneado por, entre tantos outros, Abdias do Nascimento entre os anos 1944 e 1961. Mas e depois? A resposta se encontra no artigo “Quando a Cultura é Política: Teatros Negros e Políticas Culturais no final do século XX e início do século XXI”, escrito por Terra Johari Terra e publicado Revista de antropologia USP (Universidade de São Paulo).

Enquanto os militares jogavam a cultura entre as grades e exaltavam a democracia racial, surgiram grupos amadores com estéticas próximas ao “teatro popular de esquerda”, que se afastaram de tradicionalismos e buscavam se aproximar da população. Há pouca documentação sobre o período, mas Mateus Gato Jesus e Flávia Rios mapearam dezessete iniciativas, como a peça “E Agora Falamos Nós…”, do grupo liderado por Thereza Santos e Eduardo de Oliveira e encenada no Museu de Arte de São Paulo (MASP) em 1971.

Um pouco antes disso, o artigo destaca o Grupo Ação, do Centro Popular de Cultura da UNE, integrado por Milton Gonçalves, Zózimo Bulbul, Antônio Pitanga e Joel Rufino. Entre as encenações, uma adaptação da obra de Manuel Antônio de Almeida, “Memórias de um Sargento de Milícias” escrita por Millôr Fernandes. A montagem, que apresentava loiros de olhos azuis como escravizados, foi apresentada na rua em um bairro de classe média carioca.

“Nesse mesmo momento, e em São Paulo, os atores negros eram contratados pelo teatro político, considerado de vanguarda, para encenar peças de maioria branca, instrumentalizando a diferença como forma de se posicionar contra o regime, mas sem priorizar a discussão sobre a questão racial”, analisa o texto

É um cenário carregado por mulheres. Zenaide Silva fundou, em 1978, o Grupo de Pesquisa da Cultura Negra, que buscava aprofundar discussões sociais e estéticas inspiradas no movimento estadunidense dos Panteras Negras. Dirce Thomaz criou o Centro de Dramaturgia e Pesquisa sobre a Cultura Negra em 1989, realizando oficinas no bairro da Luz, em São Paulo e desenvolvendo pesquisas sobre religiões afro-brasileiras, a diáspora e a situação do negro no país.

Em Salvador navegou a simbiose entre os grupos de teatro e os blocos afro, que surgiram no final dos anos 1960 e início de 70. Essa ebulição desembocou no Bando de Teatro Olodum, em 1991. A proposta inicial do Bando era dialogar com referências do cotidiano popular da capital baiana. Mas foi inevitável incorporar o combate ao racismo e o diálogo com a religiosidade, as festas de rua, a violência, a corrupção policial, o turismo sexual e a especulação econômica. Cabe um mundo no palco no Olodum.

O enfrentamento é uma arte. Na peça Cabaré da Rrrrraça, de 1997, o Bando decidiu cobrar meia entrada somente para pessoas negras. A polêmica soltou fogos, com ameaças de proibição do Ministério Público. Disseram que era racismo. Ainda não havia gramática para potencializar o debate. Ao fim, foi cobrada meia entrada de todo o público e o espetáculo se fartou de êxitos.

Entre alguns grupos cariocas, os pesquisadores destacam a Cia. dos Comuns e suas articulações que levaram à criação do Fórum Nacional de Performance Negra. O grupo apareceu em 2001, com pesquisas que combinavam culturas de matrizes africanas e globalização. Com essa temática, obter recursos era tarefa árdua com resultados escassos. Ao perceber que essa era uma percepção comum, grupos negros levantaram as quatro edições do Fórum (2005, 2006, 2009 e 2015), que ocorreram em Salvador, na sede do Bando de Teatro Olodum. Seus debates são assunto para outro texto.

A pesquisa de Cristiane Sobral, citada no artigo, aponta que durante os anos neoliberais de FHC essas iniciativas eram consideradas críticas demais e não atendiam às demandas do mercado. As leis de incentivo eram um horizonte distante, já que poucos grupos conheciam as engrenagens dos editais. Sem recursos e utilizando espaços improvisados muitas vezes, os grupos sobreviveram “a partir do engajamento em coletivos, voltando-se para a experimentação e para a aventura de outras temáticas em cena”.

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