A única guerra pela qual vale lutar (por Marcos Magalhães)

Como na velha marchinha, o Rio já amanheceu cantando. Quem sabe ensaiando para a grande festa de sábado, quando os banhistas da noite testarão seu inglês ao entoar, com a ilusão de sábios, que preferem morrer com um sorriso nos lábios.

Nos velhos anos dos 1930, enquanto o mundo se desentendia no comércio e flertava com a Segunda Guerra, Carmem Miranda ecoava os versos de Braguinha. A cidade amanhecia em flor, e os namorados iriam à rua em bandos, pois a primavera era a estação do amor.

Agora não há primavera. No outono do Hemisfério Sul, estão no Rio ministros de Relações Exteriores de mais de 11 países para debater a situação de um mundo instável.

Também já chegaram à cidade 30 mil participantes de um grande encontro de tecnologia, juntamente com os fãs da americana Lady Gaga, que canta no sábado para uma multidão de centenas de milhares de pessoas em Copacabana.

O mundo mudou, mas continua parecido. No Web Summit, fala-se de inteligência artificial. No antigo Palácio do Itamaraty, os chanceleres do Brics alertam para os riscos de uma grande guerra comercial. Como aquela que precedeu a dos campos de batalha.

Os inocentes de Copacabana (como os antigos do Leblon) tudo ignoram. Mas se preparam para o coro da praia, quando ouvirem os primeiros acordes do último grande sucesso da artista americana.

A canção, que ela gravou com Bruno Mars, fala de duas pessoas que não querem se despedir, mesmo que tudo vá pelos ares.

“Se o mundo estivesse acabando, eu gostaria de estar a seu lado”, entoará em inglês a grande plateia. “Se a festa tivesse terminado e nosso tempo na Terra também, eu gostaria de te abraçar só por um momento e morrer com um sorriso”.

A noite deve terminar bem. Os fãs voltarão para casa vivos, com seus sorrisos nos rostos. A turma da tecnologia, que invade a cidade pelo terceiro ano consecutivo, também vai embora satisfeita, com ideias para novos negócios.

Mas quem imagina como voltarão a seus países os ministros que precisarão tomar seus aviões antes de a festa sequer começar? Eles sabem que precisam escolher bem as palavras da declaração final prévia ao encontro de seus chefes, em julho.

Também no Rio, no inverno tropical, os líderes dos países que integram o Brics – Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul, Arábia Saudita, Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia, Indonésia e Irã – expressarão, em voz amplificada, os consensos esboçados no encontro desta semana.

Eles não deverão poupar os ouvidos do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, autor da guerra comercial que já contamina as relações políticas entre seu país e o resto do mundo. Ou, especialmente, as relações entre os Estados Unidos e um importante fundador do Brics – a China.

Por outro lado, o que dirão os integrantes do grupo se até julho não tiver sido encontrada uma solução pacífica para a guerra que, há três anos, envolve outro fundador – a Rússia – e a Ucrânia?

São questões ainda muito delicadas, com potencial de intoxicar as relações internacionais no futuro próximo. China, Rússia e os países do Sul Global que integram o Brics vão precisar acertar o tom das notas pelas quais vão se expressar.

O pragmatismo recomenda prudência. Os resultados podem ser modestos. Não está nas mãos apenas dos representantes dos países do Brics evitar guerras comerciais ou reais. E a inteligência artificial em debate no Riocentro ainda não foi capaz de desenhar soluções para o planeta.

Além disso, por enquanto estamos apenas nos ensaios. Os ministros buscam as palavras certas, os tecnólogos trocam informações e os milhares de fãs que vão a Copacabana ainda aprendem as letras das canções.

Como em tudo, porém, pode sempre restar um pequeno espaço para a poesia.

Dos três grupos que se encontram nessa esquina tropical, pelo menos o que vai se espalhar pelas areias da praia no sábado pode compartilhar sua muito humana canção. “O nosso amor”, os fãs poderão cantar, “é a única guerra pela qual vale lutar”.

 

Marcos Magalhães. Jornalista especializado em temas globais, com mestrado em Relações Internacionais pela Universidade de Southampton (Inglaterra), apresentou na TV Senado o programa Cidadania Mundo. Iniciou a carreira em 1982, como repórter da revista Veja para a região amazônica. Em Brasília, a partir de 1985, trabalhou nas sucursais de Jornal do Brasil, IstoÉ, Gazeta Mercantil, Manchete e Estado de S. Paulo, antes de ingressar na Comunicação Social do Senado, onde permaneceu até o fim de 2018.

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