No Brasil da barbárie, símbolos ainda importam — e a PM de SP sabe

Na história da humanidade, símbolos sempre foram mais do que simples representações visuais: eles carregam valores, crenças, códigos culturais e éticos. São sinais visíveis de ideias invisíveis. Não é por acaso que, durante séculos, bandeiras, cruzes, estrelas, punhos cerrados ou suásticas definiram movimentos, impérios e revoluções. A manipulação dos símbolos é um dos modos mais poderosos de formação — ou deformação — das sociedades.

É por isso que não pode passar incólume o episódio recente envolvendo a Polícia Militar do Estado de São Paulo, onde imagens mostram policiais realizando gestos que remetem diretamente ao nazismo diante de uma cruz em chamas — a principal marca da Ku Klux Klan. Não se trata de um ato isolado ou de “molecagem” a ser desconsiderada. Trata-se de um marco simbólico, gravíssimo, de qual projeto de sociedade está sendo acalentado em espaços institucionais armados.

A PM de São Paulo é a maior força policial militar da América Latina. Sua história remonta à Força Pública do Império, que combateu movimentos de resistência como a Revolta dos Malês e a Revolta dos Escravizados. Sua função sempre esteve atravessada pela manutenção da ordem escravocrata, primeiro no Império e, depois, na República Velha. Essa raiz estrutural não foi superada. A ditadura civil-militar de 1964 não só reforçou como reconfigurou essa função repressora da PM, que passou a ser uma das bases da Doutrina de Segurança Nacional — um conceito que transformava cidadãos em inimigos internos.

Portanto, ver policiais de farda fazendo gestos nazistas e reencenando rituais típicos da Ku Klux Klan, como mostrado nos vídeos divulgados nas últimas semanas, não é apenas um ato simbólico. É o sintoma de uma cultura institucional que nunca passou por uma reforma democrática verdadeira. É o grito silencioso de que, no Brasil, a transição democrática foi apenas parcial.

No campo da filosofia política, Hannah Arendt advertia: “O mal é banal quando se normaliza.” A repetição de gestos odiosos sob o pretexto de brincadeira ou folclore é a maneira mais eficiente de normalizar a intolerância e naturalizar a violência. Mais do que isso: é uma mensagem cifrada de pertencimento a projetos políticos que rejeitam a democracia, os direitos humanos e a igualdade racial.

A imagem de uma cruz em chamas não é apenas um detalhe macabro da história americana — é um símbolo cruel, construído para espalhar medo, ódio e dor. Para quem conhece minimamente a trajetória da Ku Klux Klan, sabe que aquela fogueira iluminava noites de terror contra negros, judeus e imigrantes. Ver hoje, no Brasil, agentes do Estado — homens e mulheres que deveriam proteger a vida e a dignidade de todos — repetindo esse ritual de ódio é mais do que inconcebível: é uma afronta direta à nossa humanidade. São servidores pagos pelo povo, armados para garantir os direitos constitucionais, encenando a celebração da intolerância. E o que deveria ser óbvio precisa ser reafirmado: a Constituição Federal de 1988, nossa maior conquista democrática, ainda vigente — e que assim permaneça —, afirma de forma cristalina em seu artigo 3º que o Brasil tem como objetivo fundamental promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade ou qualquer outra forma de discriminação. Esquecer isso é trair o pacto de civilidade que ainda tenta nos manter de pé.

Não é mais possível relativizar. Não é admissível alegar ignorância histórica. A formação policial no Brasil deveria incluir, obrigatoriamente, educação em direitos humanos, memória histórica da escravidão e da ditadura militar, formação antirracista. Em vez disso, vemos ainda uma glorificação acrítica de práticas que remontam ao colonialismo, ao autoritarismo e, agora, a uma clara inspiração nos valores fascistas.

A história contemporânea mostra que símbolos abrem caminhos: foi pela repetição ostensiva de gestos, músicas, fogueiras e marchas que o nazismo se consolidou na Alemanha dos anos 1930. Foi a naturalização do discurso racista que permitiu a Ku Klux Klan agir impunemente nos EUA por décadas. Foi o desmonte da memória histórica que abriu espaço para golpes e genocídios em várias partes do mundo.

No Brasil de 2025, onde episódios como o envenenamento de duas crianças negras no Rio de Janeiro ainda não comoveram a sociedade na proporção de outros crimes, aceitar sinais de ódio racial vindos da polícia é abrir mão, de vez, do pacto democrático. Cada cruz em chamas, cada gesto de saudação nazista, cada brincadeira racista não é um ato isolado: é parte de um processo coletivo de erosão moral e institucional.

Por isso, é urgente que não se trate o ocorrido como mera “brincadeira”. É necessário punição exemplar, é necessário revisão profunda da formação policial, é necessário reafirmar o que deveria ser óbvio: em uma sociedade democrática, não há espaço para homenagens ao ódio.

O mundo inteiro já provou — em Auschwitz, em Charlottesville, em tantos outros lugares — o que acontece quando símbolos de morte são banalizados. Quando a violência simbólica é ignorada, a violência física é apenas uma consequência inevitável. O Brasil, país que carrega ainda a marca indelével da escravidão e do genocídio indígena, deveria ser o primeiro a rejeitar veementemente qualquer flerte com esses signos.

A história nos julgará, como julga todos os povos que viram o mal nascer, crescer e, mesmo assim, optaram pelo silêncio.

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