“Escravos do vinho”: juiz manda indenizar trabalhadores em R$ 3 mi

Dois anos após o resgate de mais de 200 trabalhadores em situação análoga à escravidão na colheita da safra de uva, no Rio Grande do Sul, a empresa terceirizada que os mantinha nessas condições foi responsabilizada. A Justiça do Trabalho condenou a terceirizada Fênix Serviços Administrativos e Apoio à Gestão de Saúde a pagar R$ 3 milhões de danos morais a 210 trabalhadores resgatados.

Decisão do juiz do trabalho titular de Bento Gonçalves (RS) Silvionei do Carmo reconheceu como “gravíssima” a ofensa e a culpa da empresa terceirizada, “considerando-se o reconhecimento de submissão dos trabalhadores a condições análogas ao trabalho escravo, de modo que se exige um valor mais elevado para que a finalidade pedagógica seja alcançada”.

Sobre as condições financeiras da empresa Fênix, o juiz considerou que é uma empresa que integra um grupo econômico, com empresas de pequeno e médio porte. Por isso, considera “razoável a indenização postulada na inicial, valendo salientar que o autor, inclusive, levou em conta a proporcionalidade do valor em relação ao tempo em que cada trabalhador prestou serviços em condições análogas ao trabalho escravo, atribuindo individualmente a cada um dos trabalhadores valores que variam entre R$ 3 mil e R$ 22,5 mil”.

Os trabalhadores foram resgatados, em 2023, nos municípios de Nova Roma do Sul, Caxias do Sul, Flores da Cunha e Bento Gonçalves, todos no Rio Grande do Sul. Gigantes da área, como Aurora, Salton e a Cooperativa Garibaldi, grandes vinícolas que produzem vinhos e espumantes conhecidos no mercado nacional e internacional, contrataram a Fênix.

O juiz levou em consideração argumentos do Ministério Público do Trabalho (MPT) sobre o pagamento de indenização e acerca das condições degradantes as quais sofriam os trabalhadores.


Pedido de ajuda

  • A ação narra que, em 22 de fevereiro de 2023, uma Quarta-feira de Cinzas, seis trabalhadores buscaram auxílio da Polícia Rodoviária Federal (PRF), relatando terem sido vítimas de agressões em estabelecimento no qual se encontravam alojados.
  • A PRF acionou o Serviço de Inspeção do Trabalho (SIT) e, durante inspeção, juntamente com a Polícia Federal, no alojamento, situado na Rua Fortunato João Rizzardo, no bairro Borgo, em Bento Gonçalves, foram encontrados trabalhadores residindo em condições degradantes.
  • No local, foi apreendida uma arma de choque, spray de pimenta e cassetetes, artefatos que corroboraram a narrativa dos trabalhadores que haviam reportado as agressões.
  • Ainda em 22 de fevereiro de 2023, a auditoria-Fiscal do Trabalho, acompanhada pela Polícia Federal, realizou inspeção em local apontado como estabelecimento onde eram vendidos alimentos e produtos de higiene para os trabalhadores, mediante crédito para desconto posterior nos salários. O estabelecimento era irregular e os preços praticados acima do mercado.
  • Em diligência ao alojamento onde eram mantidos mais de 100 trabalhadores, constatou-se que o local não tinha qualquer condição de servir como moradia. O local “estava extremamente sujo, desordenado, com intenso mau cheiro, oriundo da falta de conservação e limpeza e da presença de restos de comida em decomposição, diz relatório.
  • Em 23 de fevereiro de 2023, fiscalização do Trabalho e Ministério Público do Trabalho no escritório do grupo empresarial réu constatou constatando evidências da realização de ilegal cobrança do transporte e de descontos a título de vestimentas e alimentação.
  • Ainda, foi constatado que os trabalhadores não haviam recebido salário e mantinham dívidas pela imposição de pagamento pelo local do alojamento e pelo transporte desde suas localidades de origem.
  • Em ação coletiva, foi pedido “condenação dos réus no pagamento de R$3.009.000,00 (três milhões e nove mil reais) de indenização a título de dano moral individual, devendo esse valor ser revertido aos trabalhadores que foram alvo das condutas irregulares.

Em defesa, a empresa nega a configuração de trabalho em condições análogas à escravidão. Diz que nunca houve trabalho forçado, ameaças físicas ou psicológicas, “tampouco os empregados cumpriam jornada exaustiva”.

O juiz, no entanto, considerou que os elementos de prova constantes dos autos demonstram que os empregados foram submetidos a condições análogas ao trabalho escravo, mesmo que nem todos os fatos alegados na inicial tenham sido comprovados.

Assim, o juiz condena ao pagamento de danos de R$ 3 milhões por danos morais a 210 trabalhadores resgatados.

Além da Fênix, as vinícolas que contrataram os serviços da terceirizada — Aurora, Salton e Cooperativa Garibaldi — firmaram um Termo de Ajuste de Conduta com o MPT/RS ainda em 2023. Elas assumiram uma série de obrigações com os trabalhadores.

Carta aberta

Ainda em 2023, em carta aberta “à sociedade brasileira”, a Vinícola Aurora, uma das produtoras de vinho acusada de se beneficiar de trabalho análogo a escravidão, pediu desculpas e se disse envergonhada com o caso.

Leia a íntegra da carta aberta da Vinícola Aurora:

“Carta aberta da Vinícola Aurora à sociedade brasileira

No início do século passado, algumas famílias italianas cruzaram o Atlântico à procura de dias melhores. Nas malas, poucas peças de roupa, uma ou outra foto desbotada, muita coragem e um sonho: refazer a vida em um país estranho. A Vinícola Aurora nasceu desse sonho. Desse sonho e de muito trabalho.

O trabalho que sempre correu nas veias de nossos fundadores logo se misturou a esta terra, espalhou-se por entre os parreirais, nutriu cada planta com um inegociável senso de respeito pelas mãos que a semearam, que a colheram, que a ajudaram a ser da uva, o vinho, e a ganhar o mundo, reconhecimentos e, mais importante, ganhar um lugar à mesa e no coração dos brasileiros.

Os recentes acontecimentos envolvendo nossa relação com a empresa Fênix nos envergonham profundamente. Envergonham e enfurecem. Aprendemos com aqueles que vieram antes que, sem trabalho, nada seríamos. O trabalho é sagrado. Trair esse princípio seria trair a nossa história e trair a nós mesmos. Entretanto, ainda que de forma involuntária, sentimos como se fora isso que fizemos.

Primeiramente, gostaríamos de apresentar nossas mais sinceras desculpas aos trabalhadores vitimados pela situação. Ninguém mais do que eles trazem, nos ombros curados pelo Sol, o peso de uma prática intolerável, ontem, hoje e sempre. A testa daqueles que fazem o Brasil acontecer, todos os dias, às custas do seu suor honesto, deveria estar sempre erguida, orgulhosa, e nunca subjugada pela ganância de uns poucos. Repudiamos isso com todas as nossas forças.

Em seguida, sentimo-nos obrigados a estender essas desculpas ao povo brasileiro como um todo, não apenas como discurso, mas como prática. Já cometemos erros, mas temos o compromisso de não repeti-los. Como empresa, garantimos que a atenção a um tema que nos é tão relevante será redobrada, práticas serão revistas, e todas as garantias para que um episódio indesculpável como esse não venha a se repetir serão tomadas. Temos um longo caminho pela frente, mas todo longo caminho começa com um primeiro passo, e ele é dado agora.

Desde já estamos trabalhando em um programa robusto que deve implementar mudanças substanciais nas dinâmicas da Vinícola Aurora. Essas mudanças devem qualificar não apenas a nossa relação com todos os parceiros, na busca de obtermos controle sobre os processos como um todo, mas também nas práticas e políticas internas da empresa e quanto ao nosso papel enquanto agente econômico, social e cultural de destaque em nossa região e a responsabilidade que advém disso.

Acreditamos nos valores que queremos reafirmar para nos tornarmos dignos da confiança do Brasil mais uma vez e espalhar o seu nome aos quatro cantos do mundo, em cores vivas e pujantes e não em notas cinzas como a que atravessamos neste momento. Esperamos sair do outro lado como uma empresa melhor. Estamos aqui, com a mente e o coração abertos, a começar tudo de novo, se for preciso, como fizeram nossos antepassados ao aqui desembarcarem. Apenas, ao contrário deles, que eram pura incerteza sobre uma terra estranha, fazemos isso com a convicção de ser este um país maravilhoso que merece o melhor de nós.

Trabalho não nos assusta. Deveria ser sempre uma fonte de alegria e realização. E a Vinícola Aurora não medirá esforços para colaborar com a construção de um mundo em que o respeito, o orgulho e a realização façam parte da vida de cada trabalhador.

Sinceramente,

Cooperativa Vinícola Aurora”

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