O livro não morrerá (por José Sarney)

Na semana passada comemoramos o Dia Mundial do Livro (23 de abril), com letra maiúscula, pois o Livro é o meu maior amigo, que Deus me deu no meu nascimento e me acompanhará até o fim. Acredito que vinte por cento da minha vida tenho passado o tempo em sua companhia.

Um dia, em São Paulo, ao almoçar com Elio Gaspari, ele me tranquilizou dizendo que duas coisas não iam acabar com a ameaça dos avanços da internet e do livro digital e concluiu: o jornal e o livro não acabarão nunca. Concordei e fui sedimentando essa convicção.

Hoje sei que alguns segmentos do livro foram atingidos: as enciclopédias e os dicionários já morreram. As minhas enciclopédias Larousse e Britânica já estão com doença terminal autoimune: olham-me com os olhos de amargura, pois há muito tempo não as procuro. Estou de amores novos com a Wikipédia.
Há sete anos participei da Feira do Livro de Guadalajara, convidado por seu presidente, Raúl Padilla López, a maior feira do livro em espanhol do mundo — um extraordinário conjunto com imensos espaços, onde se realizam palestras, seminários, com autógrafos de grandes autores. Ali encontrei García Márquez, Vargas Llosa, Miguel de la Madrid, Nélida Piñón, Marisol Schulz e muitos outros.

Pronunciei a conferência inaugural. O tema era “O livro e a internet”. Defendi que o livro jamais acabaria e procurei percorrer o longo e grande caminho da escrita, como consequência da linguagem.

Minha geração viveu entre a magia e a realidade. Aconteceram fatos e criaram-se coisas que nunca sonhamos pudessem existir. As descobertas científicas colocaram em nossas mãos milagres inimagináveis. De repente, podemos, com um monitor à nossa frente, a TV, assistir ao que acontece em todos os lugares e no mesmo instante em que estão acontecendo. Com um pequeno paralelogramo, uma caixinha que cabe na palma da mão, o celular, podemos localizar qualquer pessoa, em qualquer lugar do mundo e com ela falar, comunicar, transmitir notícias, saber do tempo, fazer cálculos e recuperar os recados mandados de outra máquina — o computador —, numa conexão universal onde passam quase instantaneamente todas as informações que eu desejar, milhões e zilhões de dados sobre tudo, que muda a cada segundo, sem um centro organizador e produtor, e vai crescendo à proporção que alguém a ele se agrega, nessa teia que não tem limites, ganha o infinito e se chama rede.

A História é marcada por mudanças mais ou menos bruscas que alteram seu curso. Revoluções, dizemos. A do Fogo, a da Roda, a da Navegação. Com mais razão, a da Agricultura, da Terra Semeada, a do Pastoreio. Também dizemos idades: da Pedra, do Bronze, do Ferro. Mas o que define realmente o homem é sua capacidade de se comunicar. Só com o Homo habilis, há dois e meio milhões de anos, surge a capacidade fisiológica da linguagem, talvez com a comunicação simbólica, e apenas com o Homo sapiens sapiens, há meros duzentos mil anos, surge a linguagem propriamente dita. Não sabemos como surgiu, mas sabemos que ela transformou profundamente a sociedade humana.

Há cem mil anos a linguagem falada começa a se diversificar. Ela é o instrumento — instrumento tecnológico — que permite a troca, que permite o intercâmbio de cultura, que permite a formalização de estruturas sociais, e é portadora de sua própria transformação.

A tecnologia da escrita foi usada, desde o começo, como instrumento de poder. Claude Lévi-Strauss — que foi meu amigo e com quem mantive razoável correspondência — tem uma frase muito forte: a escrita “era usada para facilitar a escravidão de outros seres humanos”. A escrita esteve associada com a estruturação das sociedades, a formação de hierarquias internas e de supremacia externa.

A capacidade de aprender sem mestre foi uma das grandes façanhas da escrita. Mas o verdadeiro feito foi acelerar a velocidade em que o conhecimento — informação e também sabedoria —, era transmitido. Os intervalos da natureza estão sempre em aceleração, e este impulso foi maior: a vida tem 4,3 bilhões de anos; primatas, 10 milhões; Homo, 2,5 milhões; Homo sapiens e linguagem falada, 200 mil; escrita, 5 mil e trezentos anos. O brusco passo da difusão da cultura oral para a cultura escrita levou 25, 30 séculos. Uma eternidade, mas um instante. Da escrita para cá corre a História.

Em Roma, os grandes homens deviam ser também escritores. Era parte essencial de sua reputação a qualidade do que escreviam. Assim a memória de Cícero e César encontra a de Virgílio e Plutarco.

A leitura e o livro caminharam. Na Idade Média a cópia era uma arte, os livros e as bibliotecas, preciosidades. As bibliotecas das primeiras universidades, como a Sorbonne, tinham umas poucas centenas de exemplares. Foi quando chegou a revolução de Gutenberg. Com a imprensa, a difusão do conhecimento daria um salto.

Assim chegamos à era atual em que a internet ameaça o livro em papel.

Nessa era o livro vencerá. É a mais nova tecnologia. Cai e não quebra. Tem todos os programas de computador. Não precisa de energia. Pode ser levado e lido (em) a qualquer lugar: no ônibus, no automóvel, no avião e no banheiro.
Como é gostoso seu cheiro e poder voltar a página para verificar o que foi lido!
Não há melhor presente do que um livro.

Quando visitei os Estados Unidos como chefe de Estado, a Srª Selwa Roosevelt, então chefe do cerimonial da Casa Branca, que escreveu suas memórias, disse que a mais fácil escolha de presente que teve para o Presidente que visitava os Estados Unidos foi o meu, porque soube que eu gostava de livro e que ela tinha predileção por Walt Whitman, poeta americano. E dos grandes. Ela comprou a coleção de suas obras completas e ofertou-me.

O Presidente Reagan as autografou: “Melhor homenagem eu não poderia fazer ao meu amigo, o Livro, senão estas palavras, desejando que ele faça parte da vida de todos os brasileiros e brasileiras.”
José Sarney, ex-presidente 

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