UM ANO DAS ENCHENTES: A vida de quem precisou deixar tudo para trás em busca da sobrevivência

Dias se tornaram noite, o som da chuva se converteu em sinal de medo e desespero. O que começou apenas como mais um temporal na sexta-feira, 26 de abril de 2024, converteu-se na maior tragédia climática da história do Rio Grande do Sul.

Conforme a Defesa Civil, mais de 2,3 milhões de pessoas foram afetadas pelas enchentes. No total, o Estado registrou 184 mortes e 806 feridos. Até o dia 30 de abril de 2025, 25 pessoas seguiam desaparecidas.

Bairro Mathias Velho no dia 15 de maio de 2024 | abc+



Bairro Mathias Velho no dia 15 de maio de 2024

Foto: Paulo Pires/GES

Canoas foi o município com maior número de mortes registradas: 31. A estimativa é de 180 mil pessoas tenham sido afetadas. Na sequência aparecem Roca Sales, com 14 mortes, Cruzeiro do Sul (13) e Bento Gonçalves (11).

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Em São Leopoldo, nove moradores morreram devido à catástrofe, enquanto Novo Hamburgo teve uma morte relacionada às enchentes.

Recomeço

Morador do bairro Santo Afonso, em Novo Hamburgo, Cristian Alexandre Vargas da Silva, 26 anos, saiu de casa pensando que logo voltaria, mas a história foi bem diferente.

“Sai sem nada, com a água na canela. Pensei que ia voltar rápido.” O técnico de ar-condicionado conseguiu salvar apenas a geladeira e a máquina de lavar. “Colocamos no carro do meu cunhado e permaneceram em um abrigo, ajudando outras pessoas que precisavam.”

Cristian Alexandre, morador do bairro Santo Afonso  | abc+



Cristian Alexandre, morador do bairro Santo Afonso

Foto: Juliano Piasentin/ GES-Especial

Durante a enchente, permaneceu com a família na casa da mãe, em São Leopoldo. “Ela mora no bairro Campestre, é alto, ficamos um mês lá.” Depois, voltou para Novo Hamburgo, entretanto alugou a casa no Kephas, onde permaneceu até fevereiro deste ano. “Foi quando viemos novamente para o Santo Afonso, aqui a casa é da minha esposa e o irmão dela morava na época da enchente.”

A residência na Rua México também ficou alagada. “Estou trabalhando bastante e começamos a reformar. Aos poucos consegui recuperar tudo que perdi na enchente.”

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Ainda que tenha reconquistado os bens materiais, os vídeos da antiga casa sendo alagada não saem da cabeça. “Foi apavorante, ver as coisas indo embora. Roupas, móveis, tudo. Esperamos que não aconteça de novo.”

Questionado se teme o pior, já que voltou a morar em uma área alagada, Cristian disse que sim. “Tenho um pouco de medo. Mas, agora estão arrumando o dique. A obra está bem avançada, temos esperança.”

A antiga casa foi reformada e entregue. “Já alugaram novamente. Arrumei tudo e deixei as tintas para o dono pintar no verão, quando estivesse seca”, completa. 

Tragédia sem fim

Em Canoas, o morador do bairro Fátima, João Loureço Pereira Borges, pensou que já havia passado pelo maior drama de sua vida quando teve uma inflamação na medula que limitou seus movimentos. No entanto, uma ligação telefônica mudou tudo.

“Eu não estava acompanhando as notícias na TV”, lembra. “De repente, um conhecido meu ligou e disse ‘João, precisa dar um jeito de sair de casa’. Fui olhar pela janela e a água no pátio já estava na altura da roda na cadeira.”

João Borges passou pela enchente em 2024  | abc+



João Borges passou pela enchente em 2024

Foto: Paulo Pires/GES

Na época, aposentando-se por invalidez, João cuidava da mãe, Dolores Borges, 94 anos, acamada com problemas diversos de saúde. Sabendo que não conseguiria tirá-la do local, esperou pelo pior.

“Já não dava tempo para sair de casa e nem tentar mais nada”, recorda. “A gente não tinha luz e o celular já tinha descarregado a bateria. Resolvi me abraçar na minha mãe e esperar. Eu estava pronto para morrer ali mesmo.”

Foi graças a um vizinho que João e a mãe conseguiram sair de casa. “Buscaram a gente de barco”, diz. “Então nos levaram para o ginásio da Ulbra, mas chegando lá não conseguimos nem entrar. Já havia 7 mil pessoas. Nos levaram para o CAIC [Escola Erna Würth, no bairro Guajuviras] e por lá a gente parou.”

Foram dois meses no abrigo instalado na instituição. Durante o período, as condições da saúde de Doralice pioraram e ela acabou morrendo. Não houve ressentimento de João.

“A saúde da minha mãe já estava muito fragilizada e, dentro do possível, embora um período muito difícil, não dá para reclamar de como nos trataram no abrigo”, afirma. “Era gente demais. Todos reunidos em um mesmo espaço. Acho que os voluntários se esforçaram ao máximo.”

Casa destruída

Foi por meio de fotografias e vídeos que João Loureço descobriu que a casa em que morou durante a vida inteira na Rua Bartolomeu de Gusmão não resistiu e acabou arrastada pela água. Ele sabia, portanto, que não teria mais um teto ao sair do abrigo.

“Só sobrou um pequeno galpão que servia de garagem, mas até este espaço a Prefeitura de Canoas condenou, porque não tinha condições de ficar de pé”, relata. “Desde então, vivo de aluguel, me virando aqui e ali, para conseguir pagar as contas.”

Casa onde João Borges morava em Canoas  | abc+



Casa onde João Borges morava em Canoas

Foto: Paulo Pires/GES

Aos 59 anos, João vive em uma pequena casa a poucos metros do terreno em que morava. Tenta se manter por meio de doações. Tem uma TV e um colchão improvisados, além de alguns itens de cozinha.

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“Queria ter força para recomeçar, mas hoje, sinceramente, eu não tenho”, desabafa. “Sei que tem muita gente em situação pior que a minha desde a tragédia, então não reclamo muito. Cada um tem sua cruz para carregar.” 

*Colaborou: Leandro Domingos 

 

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