Cora Coralina, o médico, o medo da morte e os 4 gigantes

O goiano Heitor Rosa, hoje com 84 anos, estava começando a exercer a medicina quando recebeu um telefonema no consultório. A mulher do outro lado da linha queria atendimento médico, mas a doente não era ela, era a tia dela. E tinha mais um complicador, a adoentada não morava em Goiânia, mas 130 km ao norte, na Cidade de Goiás.

Era Cora Coralina quem precisava de ajuda médica. Naquele ano de 1970, a poeta já era uma senhorinha de 81 anos. Embora tivesse publicado o primeiro livro aos 75, a dona da Casa Velha da Ponte já tinha sido esplendorosamente surpreendida com uma crônica de um dos mais consagrados poetas brasileiros, Carlos Drummond de Andrade.

Três meses antes de acontecer a história que aqui começo a contar, Carlos Drummond de Andrade tinha publicado no Caderno B do Jornal do Brasil a crônica que abriu o coração brasileiro para a poeta goiana.

O jovem médico sabia muito bem quem era Cora Coralina. Chamou um colega mais experiente e, com os instrumentos básicos de um clínico geral, saiu no rumo de Goiás.

Era uma sexta-feira, feriado da Paixão de Cristo, e um silêncio religioso envolvia a pequena e histórica Goiás Velho e, nela, a Casa Velha da Ponte. Cora estava numa cama muito simples, “mais parecia um catre”.

Feitas as perguntas e os exames clínicos de praxe, os dois homens não encontraram nenhum sintoma que exigisse socorro emergencial. “Mais parecia um quadro de ansiedade, porque logo ela começou a conversar e a contar histórias”. O outro médico se despediu, foi procurar pessoas a quem conhecia na cidade, e o doutor Heitor ficou proseando goianidades com a poeta já célebre tanto na antiga quanto na nova capital de Goiás.

Vale contar que, além de médico, Heitor Rosa é também escritor, com quatro livros de crônica e dois romances publicados. Um deles, Memórias de um Cirurgião- Barbeiro, mereceu honrosa orelha de Moacyr Scliar, consagrado escritor gaúcho, também médico. Por isso, sempre levava no porta-luvas um gravador para eventuais anotações ou entrevistas. Quando viu que a prosa com a poeta se prolongava, perguntou a ela se poderia gravar o bate-papo.

Autorizado pela paciente, pôs-se a registrar a voz grave e trêmula de Cora. Já sem nenhuma das queixas que haviam levado os médicos a Goiás, a doceira se animou com o gravador e anunciou que iria declamar um poema.

Nele, a goiana nascida nas margens do Rio Vermelho começa a descrever um cenário caudaloso, uma corredeira de águas perigosas e uma mãe e seus cinco filhos tentando se salvar da enchente: “Água pelo queixo, e eu bracejava, bracejava/Quatro crianças no meu dorso/Agarradas nos meus cabelos, nas minhas orelhas/Nos meus ombros, nas minhas carnes/Quatro crianças que eu levava comigo e que devia levar até o porto.”

Segue o poema em seu relato de uma situação extrema, em que mãe e filhos estão correndo risco de afogamento:

“E o remanso me jogou para a margem/Senti uma solidez para os meus pés./Levantei/Saí da água escorrendo com a dor […] A mãe ainda sentia “no dorso, aquelas quatro crianças”. Então, pisou “a terra firme da margem”. Todos estavam salvos. Nesse instante, a mãe que atravessou o rio com os filhos agarrados às costas, sente uma epifania: “Esta hora foi a hora do deslumbramento/Eu havia carregado quatro crianças? Não./Quatro gigantes haviam me carregado./Eu não carreguei meus filhos/Quatro gigantes me carregaram/Saltaram de meus ombros quatro gigantes./Eu vi/E compreendi que aquelas crianças que eu pensava que eu estava carregando/Agarradas aos meus cabelos, às minhas orelhas/Eram quatro gigantes que me carregavam”.

O poema é longo, não começa e nem termina nesses trechos aqui citados. Ao que se sabe, não foram (ainda) publicados. Mas um CD com a gravação faz parte do acervo do Museu Casa de Cora Coralina, em Goiás Velho, entregue pelo médico.

Antes, porém, de a gravação chegar aos ouvidos dos que guardam a memória da poeta goiana, a fita-cassete daquele 1970 dormiu mais de 30 anos numa gaveta. Até que um dia, remexendo em guardados antigos, Heitor Rosa reencontrou o poema e a memória de seu primeiro encontro com Cora Coralina.

A tecnologia havia mudado e muito. Não havia mais gravador para ouvir a fita-cassete. Então, doutor Heitor procurou as organizações Jayme Câmara, em Goiânia, em busca de ajuda tecnológica. A notícia chegou rapidamente à redação de O Popular e o repórter Rogério Borges relatou nas páginas do jornal, em 2004, essa história.

Se a fita-cassete ficou esquecida no fundo de uma gaveta, o contato de Heitor Rosa com Cora Coralina se manteve.

Sempre que ela tinha algum incômodo físico, procurava o médico. Até que um dia fez um pedido incomum. Agraciada com o título de Doutora Honoris Causa pela Universidade Federal de Goiás (UFG), Cora adiava continuamente a cerimônia de entrega da honraria.

Queria que o médico estivesse presente ao evento, porque temia ter um ataque cardíaco. O medo tinha razão de ser: a poeta já estava com 94 anos. E havia um precedente: João Guimarães Rosa adiou várias vezes a cerimônia de entrada na Academia Brasileira de Letras para, imortal, ocupar a cadeira de número 2.

Temia que o coração não aguentasse. Temor que, de algum modo, se concretizou: três dias depois de receber a imortalidade, Guimarães Rosa morreu de infarto.

O médico aceitou de pronto a incumbência: providenciou ambulância e enfermeiro e se postou no auditório, numa das fileiras da frente, para que Cora Coralina o visse. A cerimônia deu-se com toda a pompa e circunstância. E a poeta voltou pra casa como doutora honoris causa.

Morreu quase dois anos depois, quatro meses antes de completar 96 anos.

* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.

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