Um Watergate todos os dias (Por Pedro Guerreiro)

A frase é de Jeffrey Goldberg, diretor da revista The Atlantic, o mesmo que foi adicionado acidentalmente a um canal de conversação privado na aplicação Signal onde a cúpula do Governo norte-americano, à excepção do Presidente, discutia planos militares confidenciais de ataque aos houthis no Iémen: “Cada dia é uma espécie de Watergate” com Donald Trump na Casa Branca, disse o jornalista nesta quarta-feira, numa conferência em Londres.

Já conhecíamos este registo incessante de casos da primeira passagem de Trump pela Casa Branca, mas o ritmo e a gravidade dos escândalos intensificam-se agora, em sentido inverso ao escrutínio de que o Presidente é objeto: o Congresso de maioria republicana abdicou do seu papel fiscalizador; as decisões da justiça norte-americana, que concedeu ao Presidente um estatuto de imunidade quase total, são abertamente contestadas ou ignoradas pela Casa Branca; a imprensa não alinhada é crescentemente alvo de tentativas de condicionamento; os democratas dividem-se entre os que querem ser oposição agora, ou em 2026, ou só em 2028.

Eis dois escândalos conhecidos nos últimos dias. O primeiro é relatado nesta quarta-feira pelo Washington Post. Vários países sujeitos às pesadas taxas alfandegárias decretadas por Trump estão a ser pressionados pela diplomacia norte-americana a fazer concessões à Starlink, a empresa de Internet por satélite de Elon Musk, o grande financiador da última campanha eleitoral republicana. Dá-se o exemplo do Lesoto, um pobre país africano de dois milhões de habitantes, alvo de proibitivas taxas de 50% sobre os seus produtos, que acaba de autorizar a entrada da companhia no seu mercado.

A relação direta entre as negociações sobre as taxas e a decisão dos reguladores do país africano de dar luz verde à Starlink não é uma mera conjectura do jornal norte-americano, mas algo que é reconhecido em comunicações internas do Departamento de Estado. A mesma operação de pressão está ou esteve em curso na Índia, Turquia, Camboja, Djibouti e noutros países em conversações com Washington.

O esforço de promoção da Starlink pelo Governo norte-americano não é novo e já vem da era Biden, mas era enquadrado na altura com a necessidade de travar a expansão de serviços correntes chineses e russos. As concessões à empresa de Musk parecem agora ser parte integral, embora não reconhecida publicamente, das exigências impostas aos países mais penalizados pela guerra comercial iniciada por Trump. Ou há Starlink, ou há taxas. É um triunfo para Musk que se soma à perspectiva de novos contratos, nos Estados Unidos, entre as suas Starlink e SpaceX, de um lado, e o Pentágono e a NASA, do outro. Ao mesmo tempo que o homem mais rico do mundo decide e executa cortes discricionários no Estado federal.

Mais evidentes ainda são os conflitos de interesse revelados na semana passada pelo New York Times. Trump e a sua família, que segundo a CBS terão visto os seus ativos de criptomoedas valorizarem em quase três mil milhões de dólares nos últimos tempos, têm estado a utilizar a presidência norte-americana para avançar os seus investimentos no sector. A World Liberty Financial (WLF), uma empresa de criptofinança controlada pelos Trump, recebe investimentos de empresários que têm visto os seus problemas com a justiça norte-americana serem resolvidos e arquivados.

Foi o caso de Justin Sun (o milionário chinês que comprou e comeu a banana de Maurizio Cattelan por 5,8 milhões de dólares), que investiu 75 milhões de euros na WLF e viu a CMVM norte-americana desistir de uma investigação às suas alegadas irregularidades financeiras. Ou de Arthur Hayes, outro empresário da área, que recebeu um perdão presidencial de Trump em março. Acrescem ainda as suspeitas de que a WLF terá recebido dinheiro de indivíduos estrangeiros que depois terá sido canalizado para o comité de tomada de posse de Trump. A lei norte-americana proíbe qualquer financiamento estrangeiro a este tipo de comités, a campanhas eleitorais ou qualquer atividade política.

A WLF terá ainda muito mais a ganhar se forem avante duas iniciativas nas mãos de Trump e dos republicanos: o estabelecimento de um fundo soberano de criptomoedas em que a ethereum terá, diz o Presidente, um papel central (a empresa é detentora de uma significativa quantidade desta moeda virtual), e a aprovação de um regime regulatório para as stablecoins (ou moedas estáveis, em paridade com divisas reais como o dólar, e que facilitam a compra e venda de criptomoedas), sendo que a WLF também comercializa este tipo de activo.

Trump é simultaneamente investidor e regulador da criptofinança, e o conflito parece não lhe causar um grande dilema. Pelo contrário: este mês, no dia 22, vai oferecer um jantar cuja cotação disparou com o anúncio. Chegou mesmo a prometer uma visita guiada à Casa Branca, mas a ideia foi entretanto apagada do site ligado à iniciativa.

No Congresso, os democratas pedem agora uma investigação aos investimentos em criptomoedas da família Trump, e senadores como Elizabeth Warren, Bernie Sanders e Jeff Merkley acusam abertamente o Presidente de corrupção.

Ao mesmo tempo que enriquece, Trump pede paciência um prognóstico económico fortemente penalizado pelas suas tarifas. As crianças, disse o Presidente numa entrevista à NBC, “não precisam de 30 bonecas”, apenas “três ou quatro”. “Não precisam de 250 lápis, podem ter cinco”, defendeu.

É uma nova versão do “comam brioche” incorretamente atribuído a Maria Antonieta. Mas não será por isto que Trump perderá a cabeça como a rainha francesa. Amanhã haverá novos escândalos para nos distrairmos dos casos de hoje.

 

(Transcrito do PÚBLICO)

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