Caderno de encargos de Leão XIV (Por Teresa Martinho Toldy)

Robert Francis Prevost não veio do fim do mundo, mas andou por todo o mundo. Escolheu chamar-se Leão XIV, o que tem um significado claro: Leão XIII foi o Papa que deu início aos documentos da Igreja Católica sobre questões sociais, isto é, o Papa que abriu o caminho para uma reflexão que, na Igreja, é designada como “Doutrina Social da Igreja”. A Rerum Novarum, escrita em 1891, foi o primeiro destes documentos. A Doutrina Social da Igreja condensa o seu pensamento sobre o mundo, sobre as alegrias e as tristezas, as angústias e as esperanças de toda a comunidade humana, da qual a Igreja faz parte. Faz leituras dos “sinais dos tempos”, constitui uma voz profética.

(Nome de Leão XIV cria expectativa sobre atenção a questões sociais pelo novo Papa)

Não terá sido, pois, por acaso que este Papa, que apareceu à janela, tímido, comovido, começou por falar de paz: paz para todos os povos, paz para toda a Terra, num tempo e num mundo marcado por guerras impensáveis, por massacres, por formas de genocídio que o Papa Francisco não se cansou de denunciar. Leão XIV, ao proferir antes de mais a palavra “paz”, não só prossegue na linha do Papa Francisco, como toca nestas feridas abertas do mundo e nas formas de autoritarismo, nas oligarquias que, como estamos a ver, existem também, no país onde nasceu. Por muito que Trump diga que está orgulhoso, é curioso notar que as suas primeiras palavras foram para dizer que “estava surpreso”. É que este Papa não faz parte do grupo de cardeais e bispos americanos que, porventura, ainda não terão entendido que o poder autoritário é contrário ao evangelho. Tenhamos esperança: o Papa Leão XIV disse que o mal não prevalecerá, que “devemos seguir em frente”, que é necessário construir

O fato de ser um padre agostiniano, isto é, de uma congregação religiosa, e não do clero diocesano, o facto de ter vivido vinte anos no Peru e de, enquanto responsável máximo dos padres agostinianos, ter percorrido o mundo, contribui, certamente, para a predisposição para o diálogo e para a escuta – algo que parece estar arredado da geografia de tantos Estados e de tantos lugares. Também aqui vale a pena dizer que não terá sido por acaso que Leão XIV falou em espanhol dirigindo-se particularmente ao Peru, num tempo histórico em que (vale a pena frisá-lo!) são precisamente os latinos a correrem risco de deportação (palavra arrepiante) por parte do governo do seu país de origem.

Há ainda um outro pormenor relacionado com o facto de Robert Francis Prevost ser agostiniano que ele próprio mencionou. Dizia Santo Agostinho: “Convosco sou cristão, para vós sou bispo”, isto é, antes de mais o Papa é parte da Igreja, é um cristão que pertence ao povo dos cristãos, e a sua missão é fazer circular a Palavra dentro da Igreja e fora dela: “Para vós, coloco-me ao vosso serviço como bispo”.

Para todas as católicas e para todos os católicos que estão empenhados no processo sinodal foi extremamente importante Leão XIV ter mencionado o sínodo. Por quê? Porque o sínodo que o Papa Francisco convocou tem uma dinâmica diferente de todos os outros sínodos: não é um momento isolado, do qual resultaria, eventualmente, um texto “bonito” que se guardaria numa estante ao lado de outros livros. A dinâmica sinodal criada pelo Papa Francisco e que ele deixa como herança, assumida agora por Leão XIV, visto que se lhe referiu, desembocará, daqui a três anos, numa grande assembleia com ampla participação dos cristãos: não é um sínodo para os bispos. É um sínodo de todos os crentes, chamados a participar. O documento que o Papa Francisco assumiu como “o programa para continuar” enfatiza a participação de todos na vida da Igreja, a diversos níveis. Só que, para tal, como diz o documento e como, certamente, o Papa Leão XIV assumirá, é preciso ouvir a voz de todos e é preciso superar o clericalismo milenar ainda existente na Igreja. Aliás, o Papa Francisco, que nomeou Robert Francis Prevost cardeal, sempre que reunia os novos cardeais (e todos os outros também) era particularmente explícito na recusa da ideia de que eles se compreendessem a si próprios e que agissem como príncipes pontes.

Porque ser Papa é garantir a unidade da Igreja em torno do essencial (a fé em Jesus Ressuscitado, isto é, a convicção de que a morte e o mal não serão as últimas palavras da história), certamente que Leão XIV tomará o caderno de encargos que Francisco deixou e que crentes e não crentes compreenderam como uma luz em tempos sombrios, e fará o que disse: “sigamos em frente!”

 

(Transcrito do jornal PÚBLICO)

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