O que é CPLP? (por José Sarney)

Eu era Presidente da República, e Mário Soares, Presidente de Portugal. O meu telefone toca, era o meu amigo Mário Soares, de Lisboa. Como é o costume português, o interlocutor perguntou: “Está lá?”  Respondi, também no mesmo costume português: “Estou, estou!”  Nada de “Alô, alô”, como respondemos no Brasil. Ele diz: “Senhor Presidente, sei que estão realizando uma nova Constituição e venho pedir-lhe que nela conste que a língua oficial do Brasil é a Língua Portuguesa”. Respondi-lhe: “Mas, caro amigo, esta é mesmo a nossa língua e já falei ao Ulysses Guimarães que assim o faça.” E dessa forma ficou registrado em nossa Constituição. Disse ainda ao Presidente Mário Soares que desejava mesmo fazer uma reunião no Brasil para fundarmos uma comunidade de países que falam a língua portuguesa. Portugal estava de acordo, disse-me ele.

Encarreguei o Itamaraty de mobilizar nosso serviço diplomático na África para convidar, pessoalmente, todos os Presidentes dos países lusófonos para um encontro em São Luís, no Maranhão, onde faríamos uma primeira reunião.

Para minha surpresa, os africanos reagiram, recusando-se a participar de uma reunião com Portugal para criação de uma comunidade, alegando estarem num momento de proximidade da descolonização e serem muito recentes as cicatrizes deixadas pelos colonizadores, tudo ainda à flor da pele. Diante desse impasse, sugeri que fizéssemos a reunião não para criar uma comunidade, mas para criar uma instituição, o IILP (Instituto Internacional da Língua Portuguesa), com foco na defesa da língua portuguesa e de caráter eminentemente cultural. Assim todos concordaram — com exceção do José Eduardo dos Santos, Presidente de Angola, que não veio, mas enviou representante, justificando sua ausência pela indisposição de se reunir com Mário Soares.

Dessa forma, a língua mostrava o seu efeito unificador e sua neutralidade, constituindo-se patrimônio de todos nós. Anos depois, com a concordância geral, o Instituto Internacional da Língua Portuguesa tornou-se CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa), um grande e prestigiado organismo internacional, com sede na África, em Cabo Verde, presidido, em rodízio, por todos os presidentes dos países onde se fala português.

No dia 5 maio, nesta semana, celebramos o Dia Mundial da Língua Portuguesa. Essa data foi estabelecida pela CPLP — que se tornou uma organização parceira oficial da UNESCO em 2000 —, que nasceu em São Luís do Maranhão.

A Academia Brasileira de Letras foi fundada há mais de 100 anos e, na sua instalação, dois grandes escritores, Machado de Assis e Joaquim Nabuco, estabeleceram as diretrizes, sintetizadas em duas condutas: defender a língua e a tradição.

Eu, por artes do destino, sou hoje o decano da ABL e assim tenho a obrigação, como político e intelectual, de defender — como o fiz na criação da CPLP — essa nossa extraordinária língua de cultura, hoje falada por quase 300 milhões de pessoas.

Nestes últimos quinhentos anos, o português transformou-se de um idioma oceânico em um idioma continental.

Ao iniciar, no século XV, sua expansão para fora da faixa mais ocidental da Península Ibérica ganhou primeiro o Atlântico e depois o Índico, fixando-se nas ilhas e nos pequenos e numerosos portos ao longo das praias que bordejam o que os gregos chamavam de Rio Oceano. Língua de marinheiros, tornou-se o idioma de ligação dentro dos breves espaços das feitorias e o falar do comércio com os povos que lhes eram vizinhos. Impôs-se como língua de beira-mar e de viagem, insulana, quer a cercasse o mar ou a isolassem a estranheza e a hostilidade das terras que a envolviam. Isso não impediu que se tornasse a língua franca do mercadejo nos litorais da África e do sul da Ásia, que se fizesse a língua de corte, a exemplo do que sucedera com o francês na Europa do século XVII, em reinos africanos como os do Benim, do Congo e do Warri, que entregasse palavras e modos de dizer a numerosas línguas, do iorubano ao japonês, que marcasse profundamente não só o vocabulário, mas também a sintaxe de idiomas como o papiamento e o urrobo, que criasse novas línguas, como os crioulos de Cabo Verde, de Casamansa, da Guiné-Bissau, de São Tomé e Príncipe e de Ano Bom, e os papiás de Málaca, do Ceilão, de Macau, do Timor e da índia.

O açúcar, o ouro e o gado fizeram-na, com relativa rapidez, ganhar o interior do continente sul-americano. E, se mais lento foi o avançar pelos planaltos africanos, subiu o Zambeze e se instalou nos “prazos” de Moçambique e percorreu, em Angola, o Cuanza, o Loja, o Dande, o Cuvo, fixando-se, ali e acolá, em entrepostos, vilarejos e acampamentos de pombeiros. Abandonou, pouco a pouco, sua insularidade. Saiu dos navios e das praias, para expandir-se terra firme adentro, acabando por consolidar-se num imenso espaço territorial, terra que se tornou a América Portuguesa, um dos mais amplos espaços do mundo em que se fala o mesmo idioma. E fala-se o mesmo idioma com invulgar unidade, uma unidade que se superpõe aos regionalismos que o enriquecem e que o tornam, sem qualquer esforço, naturalmente compreendido por todos os que o falam ao longo do grande arco que corre da Europa até Timor-Leste.

 

José Sarney, ex-presidente 

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