Hipocrisia e a crise de governabilidade à vista (por Hubert Alquéres)

Em 2025, o governo Lula conta, formalmente, com uma coalizão ampla: 16 partidos e cerca de 300 deputados federais. No papel, uma base robusta. Na prática, um castelo de areia. A sequência de derrotas no Congresso — ao menos oito no último mês — expôs o esgarçamento dessa aliança. Em vários casos, a infidelidade partiu justamente de partidos que ocupam ministérios.

O episódio mais eloquente foi a blindagem do deputado Alexandre Ramagem. Sete das onze siglas com cargos no Executivo votaram em peso a favor da suspensão da ação penal, inclusive criando brechas que podem beneficiar Jair Bolsonaro. A cena se repete: a base aliada atua como oposição, enquanto o Executivo se vê impotente diante de seus próprios aliados.

Esse cenário revela mais do que indisciplina: revela a erosão da autoridade presidencial. A recusa de Pedro Lucas (União Brasil) em assumir o Ministério das Comunicações, após ter aceitado o convite, tornou pública essa fragilidade. A saída do PDT, após a demissão de Carlos Lupi, somou mais um capítulo à instabilidade.

Diante da desagregação, Lula passou a depender de figuras centrais do Congresso — especialmente Davi Alcolumbre, cuja influência no Senado é comparável à de Pinheiro Machado na República Velha. Mas esse apoio tem custo: cargos e controle de espaços no governo, o que esvazia a autonomia do Executivo.

Com a popularidade em queda, Lula perdeu força para reagir à infidelidade. Sem instrumentos de coesão, cedeu a um pacto da hipocrisia: partidos fingem apoiar o governo em troca de cargos; o governo finge acreditar nesse apoio para manter uma aparência de estabilidade. A recente fala de Arthur Lira escancarou essa dinâmica ao diferenciar “base para governar” e “base para 2026”. A prioridade é eleitoral, não governamental.

Esse quadro se agrava com as emendas impositivas, que reduziram o poder de barganha do Executivo. Mas há algo mais profundo: uma deterioração da liderança política do governo e de sua capacidade de articulação. Sem base coesa, a agenda legislativa definha — e com ela, o capital político.

Parte desse impasse é responsabilidade do próprio presidente. Lula foi eleito com uma frente ampla, mas formou um governo essencialmente petista. Nenhuma das gestões anteriores concentrou tanto poder nas mãos do partido do presidente: 38% dos ministérios estão sob o comando do PT. As mudanças registradas até agora apenas reforçaram esse perfil. Os ajustes ocorreram nos ministérios petistas mais estratégicos. Agora, com Gleisi Hoffmann na articulação política e a provável entrada de Guilherme Boulos na Secretaria-Geral, o núcleo duro se fortalece ainda mais.

Como observou Felipe Nunes, do Instituto Quaest, Lula falava em Frente Democrática, mas implementou um governo do PT. As alianças feitas com o centrão foram superficiais — seladas com lideranças regionais ou figuras isoladas, sem o endosso das direções nacionais. Por isso, siglas como União, PP, PSD, MDB e Republicanos não se sentem obrigadas a defender um governo ao qual pouco participam. Em muitos casos, ocupam cargos decorativos.

Ao recusar-se a compartilhar poder, Lula desperdiçou a oportunidade de dar corpo e legitimidade à Frente Ampla. Recuou para o conforto do núcleo duro, isolou-se politicamente e tornou-se refém das chantagens do centrão.

Outro fator agrava o distanciamento: o governo deixou de representar uma expectativa de poder futuro. E sem perspectiva de continuidade, partidos migrarão para outros polos. Governabilidade depende de apoio no presente, mas também da projeção de poder no futuro. Lula, hoje, não oferece nem uma coisa nem outra.

A estratégia do presidente aposta na reedição da polarização que marcou 2018 e 2022 — crente de que o eleitor do centro voltará a apoiá-lo por rejeição ao bolsonarismo. Mas há fadiga com essa lógica. E a ausência de Bolsonaro na urna em 2026 abre espaço para novas candidaturas mais moderadas, capazes de captar o sentimento de exaustão da sociedade.

Se em 2022 a Frente Ampla esteve nas mãos da esquerda, em 2026 ela pode migrar para a direita — com um perfil menos radical, mais centrista. A criação da Federação União Progressista e a filiação de Eduardo Leite ao PSD são movimentos iniciais nessa direção.

O pacto da hipocrisia tem prazo de validade. Se Lula não se reposicionar com urgência, a previsão feita por Arthur Lira — de que ninguém quer embarcar num barco prestes a afundar — pode se concretizar já no segundo semestre.

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Hubert Alquéres é presidente da Academia Paulista de Educação.

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