Tio Sam, o senhor das armas (por Felipe Sampaio)

Meio milhão de pessoas são assassinadas por ano no mundo, segundo o UNODC (departamento da ONU que trata de drogas e crimes). E a América Latina e Caribe é a região mais violenta do planeta, concentrando quase um terço desses homicídios, apesar de ter apenas 8% da população mundial. Mas, até aí os números já são razoavelmente conhecidos da imprensa e dos especialistas.

A novidade nesse tema das armas foi revelada pelos pesquisadores do Instituto Igarapé, Robert Muggah e Katherine Aguirre, em artigo publicado recentemente na plataforma de notícias colombiana El Tiempo: Mais de 70% das armas de fogo utilizadas em homicídios na América Latina e Caribe são provenientes dos Estados Unidos, incluídos “pistolas e fuzis militares, e também carabinas de franco atirador e metralhadoras”.

O UNODC acrescenta que mais da metade dos assassinatos na região estão vinculados a facções e cartéis do tráfico de drogas e milícias paramilitares, que dominam grande parte das maiores cidades em países como Haiti, Colômbia, Bolívia, Brasil, México, entre outros. O fruto desse casamento entre o crime organizado e a indústria de armas do Tio Sam na América Latina e Caribe é um mercado da morte onde 67% dos assassinatos são cometidos com armas de fogo, enquanto a média mundial é de 40%, segundo Muggah e Aguirre.

Eles lembram que a violência histórica no continente latino-americano é potencializada pela enxurrada de armamento vendido pelos fabricantes ianques, fazendo com que as armas de fogo tenham papel central até na violência doméstica (onde as mulheres são as maiores vítimas). Para se ter uma ideia, entre 2018 e 2023 cerca de 75% das armas apreendidas no Caribe vinham dos EUA, especialmente da Flórida, Nova York e Virgínia. Foi possível constatar que em alguns países latino-americanos até 90% dos homicídios foram praticados com armas norte-americanas.

Armas servem para isso, enriquecer poucos matando muitos. Nesse caso, não seria exagero concordarmos com o General Dwight Eisenhower quando, em seus últimos dias como Presidente dos EUA, alertava que o maior perigo para a democracia ocidental poderia não ser a União Soviética (em plena Guerra Fria), mas sim a indústria de armamentos americana.

Apenas para comparar, no Japão quase ninguém tem arma e quase não se mata (0,25 mortes por 100 mil hab./ano). Significa que, se a taxa brasileira de homicídios fosse igual a essa do Japão, teríamos na Terra da Santa Cruz apenas 500 assassinatos por ano. Porém, nosso número é quase 100 vezes maior! Talvez porque aqui circulem mais de quatro milhões de armas nas mãos de particulares.

O artigo dos pesquisadores do Instituto Igarapé chama a atenção também para a cadeia de comercialização de todo esse armamento, que começa com a compra legal nos Estados Unidos em feiras e lojas de armas, seja por empresas laranja, seja por colecionadores, ou mesmo por pessoas físicas. Mais adiante essas armas são desencaminhadas do fluxo legal e contrabandeadas para México, Caribe, América Central e América do Sul, “[…] escondidas em carregamentos desde Miami […] transportando armas ocultas e barris, automóveis, containers e aviões”.

A situação é agravada pelos roubos durante o transporte e armazenamento, ou mesmo pelo desvio em arsenais policiais e militares por agentes públicos corruptos. Robert Muggah e Katherine Aguirre concluem que, em uma região assolada por corrupção e má governança, o tráfico de armas continuará enquanto não houver cooperação internacional e pressão sobre os Estados Unidos para conter o fluxo de armas.

 

Felipe Sampaio: Cofundador do Centro Soberania e Clima; dirigiu o Instituto de Estudos de Defesa no Ministério da Defesa; foi diretor do sistema de estatísticas do Ministério da Justiça; atuou em grandes empresas, organismos internacionais e 3º setor; foi empreendedor em mineração; é chefe de gabinete da secretaria-executiva no Ministério do Empreendedorismo.

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