O velório da democracia no funeral da soberania (por Felipe Sampaio)

O Brasil vem cometendo um descuido histórico há 500 anos, desde a chegada do colonizador europeu. Ao longo do tempo, lideranças criminosas se auto coroaram chefes de um Estado paralelo, fazendo bolsões do território nacional retrocederem a um modo de governo medieval, especialmente nas grandes cidades, na fronteira e na região amazônica.

No século XVI, o jurista francês Jean Boudin já ensinava que “Soberania do Estado refere-se à entidade que não conhece superior na ordem externa, nem igual na ordem interna”. Estabelecia-se, com isso, um dos pilares do Estado Nacional moderno. Duzentos anos mais tarde o Iluminismo ampliou esse conceito para contemplar a Soberania Popular, que até hoje está na base da definição de Democracia: “… é a doutrina pela qual o Estado é criado e sujeito à vontade das pessoas, que são a fonte de todo o poder político”.

No que diz respeito à “ordem externa” de Boudin, não estamos mal, porque nosso país desenvolveu uma Diplomacia e Forças Armadas maduras e qualificadas o suficiente para garantir nossa integridade territorial até o momento (torcendo para Trump não querer testá-la). Mas, no que se refere à “ordem interna”, o Estado brasileiro ainda “conhece um igual” – o crime organizado -, considerando-se que em algumas porções expressivas do nosso território cresce a tendência de que o povo não seja “a fonte de todo o poder político”.

Acontece que, para alguns milhões de brasileiros, aquela “vontade das pessoas” não funciona em seus bairros sequer para escolher um botijão de gás, porque suas comunidades tornaram-se feudos, onde prevalecem uma lei e uma economia locais que se impõem pelo arsenal do crime. Em algumas cidades, está ficando difícil até distinguir entre a economia legal e os negócios ilegais. Essa cleptocracia, com lucros sedutores e violência opressora, consegue influenciar até mesmo os poderes constitucionais legítimos.

Um exemplo desse fenômeno ocorreu recentemente durante um dos funerais mais ilustrativos da história da nossa Democracia. Não confundir com as despedidas do líder popular uruguaio Pepe Mujica, tampouco com as do Papa Francisco. No Rio de Janeiro, outro sepultamento movimentava o noticiário nacional. Com pompa e circunstância, um rapaz de 36 anos chamado Thiago Folly (ou simplesmente TH) teve velório e enterro com direito a fogos de artifícios, comes e bebes, discursos, salvas de tiros, climão entre sucessores, briga de viúvas e até ônibus fretados para transportar seus ‘súditos’ compulsórios.

Não se poderia esperar menos para o adeus a um senhor feudal do narcotráfico. O prodígio TH escalou rápido nos negócios do crime. Já havia uns 10 anos que reinava em territórios do Rio, ofertando trabalho, entretenimento e serviços ‘públicos’. Seu aparato de segurança tinha padrão presidencial (sua residência ‘oficial’ era guardada por 30 homens com material militar pesado). Nas comunidades governadas por TH a ordem era atirar em qualquer veículo que atravessasse a fronteira do seu feudo sem ‘visto de acesso’.

Homenagens como essas prestadas a TH não são novidade no Rio, em São Paulo, no Brasil afora, nem América Latina. Foram comuns, algumas décadas atrás, até mesmo na Itália, nos EUA, Leste Europeu e Japão. No fim das contas, fica a dica de que, mesmo em pleno século XXI, nenhum Estado soberano e democrático pode prescindir de se (re)legitimar a toda hora, em todos os seus rincões e, principalmente, para todos os seus cidadãos.

 

Felipe Sampaio: Cofundador do Centro Soberania e Clima; dirigiu o Instituto de Estudos de Defesa no Ministério da Defesa; foi diretor do sistema de estatísticas do Ministério da Justiça; ex-secretário executivo de segurança urbana do Recife; atuou em grandes empresas e 3º setor; foi empreendedor em mineração; é chefe de gabinete da secretaria-executiva no Ministério do Empreendedor

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