A morte é negociação ou resistência

Camila abraçava o filho enquanto era tragada pelas águas escuras do dique próximo à Freguesia de Santana, em Salvador. Marcos tinha 5 meses. A morte era uma escolha fria que avançava pelo corpo, até que alguém impediu o afogamento e chamou a polícia. Na delegacia, Camila explicou o motivo da tentativa de suicídio. Preferia despedir-se da vida a suportar os maus-tratos de seus senhores, um casal de africanos libertos. Aconselhados pelo subdelegado e pelo temor de perder o árduo investimento, o casal decidiu colocar Camila à venda. A morte, quando não enfeitiçava, era arma de negociação.

Em um fim de tarde em Salvador, João fechou os olhos e tomou a cachaça num gole rápido e raivoso. Dirigiu-se ao oratório da fazenda. Rezou de joelhos, a voz baixa, a fé embriagada. Agarrou uma espingarda e caminhou na direção da dona da terra. Ao encontrá-la disse firme: “Vosmicê pode hoje mandar surrar-me e fazer de mim o que quiser, por hoje se acaba a lida”. Saiu, subiu a ladeira que dava para a senzala. Pouco depois, João pôs o cano da arma sobre o peito e apertou o gatilho. Ouviu-se apenas um clique – a espingarda estava descarregada. O escravizado foi ao depósito, onde a carregou. Enfim, apontou a arma para o lado esquerdo do peito e disparou. No instante seguinte, caiu morto.

Em uma sociedade escravista, a morte pode ser um alívio, pode resultar em negociação. Por que e como os escravizados tiravam suas próprias vidas? Algumas respostas estão no artigo “Por hoje se acaba a lida: suicídio escravo na Bahia (1850-1888), escrito por Jackson Ferreira e publicado na Revista Afro-Ásia da UFBA (Universidade Federal da Bahia)

Ao consultar milhares de documentos de pessoas falecidas no estado no período, o pesquisador chegou a cerca de 500 suicídios. Mas Ferreira carrega essa informação com quatro ressalvas. Primeiro, a frágil eficiência no registro de ocorrências; os suicídios eram ocultados para evitar punições religiosas ou morais; muitos afogamentos foram classificados como acidentes; suicídios poderiam esconder mortes após severos castigos.

Salvador concentrou a maioria dos casos, corroborando com a tese de alguns historiadores de que os suicídios de escravizados ocorriam mais nos centros urbanos do que nas zonas rurais. As motivações dos suicídios singravam entre questões amorosas, ameaças de castigos ou venda, captura após fuga e loucura – vale nova observação: o desvario permitia um funeral cristão, fugia de questionamentos morais e desqualificava o ato frente à senzala.

Escolher como morrer poderia denunciar o verdadeiro objetivo do escravizado. “Para apenas forçar uma situação de negociação com o senhor, mostrando que ele poderia perder a sua preciosa propriedade, a opção pelas armas brancas era a mais eficaz, já que corresponde a 31,3% dos suicidas malsucedidos”, escreve Ferreira

Mas e depois da morte, é o vazio, o castigo? Alguns métodos ligavam-se ao desejo de retornar à África. O enforcamento em árvores e o afogamento favoreciam a viagem de seus espíritos à terra natal. A água era a barreira e a conexão para reunir-se aos ancestrais. O autor, ao citar Juana Elbein dos Santos, diz que a morte, para os iorubás, não se traduzia em extinção. “Morrer significava mudar de um estado para o outro, do Àiyé (mundo natural) para o Òrun (espaço sobrenatural, imenso, infinito e distante)”

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