Estudo resgata lembranças do sertão por quem viveu seca e fartura

Sertão nordestino
Foto: Renan Martins Pereira/Agência Fapesp

Uma pesquisa realizada pelo antropólogo Renan Martins Pereira revela uma perspectiva pouco explorada sobre o sertão de Pernambuco.

Com base em entrevistas com antigos vaqueiros e ex-moradores da zona rural de Floresta, o estudo resgata memórias de um passado de fartura, um tempo em que, segundo os relatos, “havia mais peixes nos rios, mais árvores na caatinga e mais alimento na mesa”.

A pesquisa busca ressignificar as secas e a abundância não como opostos, mas como categorias que coexistiam no passado. Segundo o pesquisador, a fartura evocada pelos mais velhos não é uma romantização do passado, mas uma crítica ecológica ao presente.

“Quando eles dizem que antes havia mais fartura, estão, na verdade, apontando para o que se perdeu”, afirma o pesquisador.

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Vegetação nativa preservada

O artigo mostra como esses moradores mais velhos articulam recordações de escassez e fartura. Nessa memória multifacetada, houve secas, sim; mas também houve abundância – basicamente relacionada à biodiversidade, no caso tratado no artigo.

“Os sertanejos falam de uma vegetação nativa mais preservada, de rebanhos numerosos e de maior oferta de alimentos. Essa memória da fartura não exclui a lembrança das grandes secas, mas sugere que houve uma transformação profunda na relação dos habitantes com o meio ambiente”, afirma o pesquisador.

Os relatos de antigos vaqueiros e ex-moradores do campo, como Zé Ferraz, Cirilo Diniz e Antônio José do Nascimento, retratam um sertão em que o gado era robusto, a pesca era abundante e o solo produzia com maior regularidade.

“Essa memória não tem um caráter apenas nostálgico, mas serve como um alerta sobre a mudança no uso da terra, a degradação ambiental e o impacto das mudanças climáticas. Os mais velhos não falam apenas de saudade, falam de perda real”, argumenta Pereira.

Tradições desaparecendo

As mudanças no uso da terra, a expansão da fronteira agrícola e a urbanização alteraram radicalmente o modo de vida no sertão.

“O êxodo rural reduziu a interação humana com a Caatinga e as práticas tradicionais de manejo estão desaparecendo. Muitos dizem que antes havia mais organização na vida do campo, que as festas comunitárias eram frequentes, que existia um sentimento de coletividade que hoje se perdeu”, conta o pesquisador.

Ao mesmo tempo, as secas atuais são percebidas como mais severas e prolongadas. Ele acrescenta que o conceito de “memória ecológica”, fundamental para o argumento do seu artigo, ajuda a compreender como os sertanejos interpretam essas transformações, não só com base em dados objetivos, mas também por meio de experiências vividas e narradas.

Memória viva do sertão

Em sua análise, o pesquisador recorre ao conceito de “duração” do filósofo francês Henri Bergson (1859-1941). “A memória não é um arquivo estático do passado, mas algo vivo, que transforma a percepção do presente e projeta futuros possíveis”, diz.

Essa abordagem permite enxergar as recordações das secas e da abundância como formas de resistência cultural e ecológica.

“A fartura, tal como é recordada, configura um conceito amplo. Ela diz respeito não apenas à quantidade de comida na mesa, mas também à relação das pessoas com a terra, ao respeito pelos ciclos da natureza, à segurança que vinha de um ambiente previsível. Hoje, muitos dos meus interlocutores dizem que essa fartura acabou.”, afirma.

A pesquisa de Renan Martins Pereira reconfigura o entendimento do sertão. “Mais do que um espaço de sofrimento, o semiárido é também um lugar de vida, de saberes ancestrais e de histórias que desafiam a noção de um passado perdido”, conclui o pesquisador.

Em um mundo em crise ambiental, as memórias do sertão podem oferecer lições valiosas sobre a relação entre a humanidade e a natureza.

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