Samuel Pessôa: “Governo está procurando receita nos piores lugares”

O bate-cabeça do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no tumultuado anúncio de novas medidas fiscais, na última quinta-feira (22/5), pouco antes da divulgação dos dados do relatório bimestral de receitas e despesas, mostrou que a equipe econômica liderada pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), “está procurando receitas nos piores lugares”.

A avaliação é do economista Samuel Pessôa, pesquisador associado do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre). Ele conversou com o Metrópoles na última sexta-feira (23/5), minutos depois de Haddad conceder uma entrevista coletiva para explicar os motivos do recuo do governo no reajuste do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), divulgado na véspera.

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O IOF é um tributo federal que alcança pessoas físicas e empresas e incide sobre operações que envolvem crédito, câmbio, seguros e títulos mobiliários. A Fazenda havia determinado uma taxação equivalente a 3,5% sobre as aplicações de investimentos de fundos nacionais no exterior com o objetivo de arrecadar R$ 20,5 bilhões em 2025 e R$ 41 bilhões em 2026.

No mesmo dia, o governo Lula havia publicado o detalhamento no Relatório de Avaliação de Receitas e Despesas Primárias do 2º bimestre e anunciado a primeira contenção no Orçamento deste ano, como parte dos esforços para cumprir a meta de gastos do arcabouço fiscal. Serão congelados R$ 31,3 bilhões, dos quais R$ 10,6 bilhões em bloqueio e R$ 20,7 bilhões em contingenciamento.

“É um governo que está procurando receita nos piores lugares possíveis, aumentando imposto sobre intermediação financeira, e isso gera queda da eficiência econômica”, afirmou Samuel Pessôa, na entrevista ao Metrópoles. “Toda essa querela do IOF foi tão grave que o Relatório de Avaliação de Receitas e Despesas perdeu relevância. Nós não lembramos direito dos números, muita gente não quer mais nem saber”, completou.

Leia abaixo os principais trechos da entrevista concedida por Samuel Pessôa ao Metrópoles:

O governo anunciou o congelamento de R$ 31,3 bilhões do Orçamento, o que parece não ter sido suficiente para diminuir a preocupação do mercado com a situação fiscal, e recuou em parte das mudanças que haviam sido anunciadas no Imposto sobre Operações Financeiras (IOF). Qual é a sua avaliação sobre as novas medidas fiscais?

Toda essa querela do IOF foi tão grave que o Relatório Bimestral de Avaliação de Receitas e Despesas perdeu relevância. Nós não lembramos direito dos números, muita gente não quer mais nem saber. Aumentar o IOF, que é um imposto horroroso, que gera empobrecimento do país e reduz crescimento econômico, começar um processo de fechar conta de capital com um IOF de 1,1% se a pessoa tirar o dinheiro do Brasil e colocar em outro lugar… Todas essas medidas representaram um retrocesso institucional tão grande que os números do relatório perderam relevância. Houve uma piora institucional no país.

As idas e vindas em relação ao IOF prejudicaram a própria divulgação do relatório?

Sem dúvida. É um governo que precisa de receita e está procurando receita nos piores lugares possíveis, aumentando imposto sobre intermediação financeira, e isso gera queda da eficiência econômica. O governo está iniciando um processo lento de fechamento da conta de capital, o que gera um temor quanto à estabilidade de regras para os investidores e poupadores no Brasil, dados os problemas fiscais e as dificuldades de conflitos distributivos que a economia e a sociedade brasileira têm. Quando eu vi aquele negócio do IOF, perdi o interesse em olhar os detalhes do decreto. A pauta mudou.

As medidas anunciadas não parecem mais do mesmo, com o governo dobrando a aposta em aumento de receita para cobrir o aumento de despesas?

Foi mais do mesmo, mas há ainda dois agravantes. O primeiro deles é que o IOF é dos piores impostos que existem. Pior do que ele, só a antiga CPMF [Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira, cobrança que incidia sobre todas as movimentações bancárias, extinta em 2007] e a própria inflação. O governo está tentando controlar as contas públicas tomando decisões que vão impactar o crescimento da produtividade. Estão tomando decisões que vão agravar o problema da baixa produtividade do país. O IOF tem essa gravidade: é um imposto contra o crescimento. Para atenuar o problema fiscal de curto prazo, o governo está dificultando o crescimento econômico.

E qual é o segundo agravante?

O outro problema é que o ministro Haddad sempre fala em equalização das taxas, o secretário do Tesouro [Rogério Ceron] também, o secretário [da Receita Federal] Robinson Barreirinhas idem, mas quando você vai equalizar, pode equalizar na taxa menor ou na taxa maior. Eles primeiro equalizaram na taxa maior e depois foram para um meio-termo. Você tinha muitas operações de câmbio de pessoas físicas, para investimentos, nas quais se pagava 0,38%. E agora vai se pagar pelo menos 1,1%. Então, na prática, quase triplicou o imposto sobre remessas de recursos para fora, na melhor das hipóteses. Para uma conta corrente, vão ser os 3,5%. Há um aumento de imposto sobre a mobilidade de capital. Nesse sentido, podem existir algumas interpretações para justificar a decisão do governo – e eu não sei qual delas vale, este é o problema. Esse movimento levanta dúvidas.

Quais seriam essas possíveis interpretações?

Uma interpretação diz que há uma base tributária nova, que a mobilidade de capital aumentou muito, que hoje a classe média alta abre sua conta no exterior, é muito mais fácil ir e vir… E o governo, que tem um problema fiscal, resolveu simplesmente explorar uma base tributária que não estava explorando. Se foi isso o que aconteceu, é ruim, mas até dá para entender. A segunda interpretação, mais grave, é a de que o governo fez um movimento para fechar a conta de capital para os residentes. Se você é um brasileiro residente e tem sua riqueza financeira aqui, este é um primeiro movimento para impedir que você mude o local em que sua riqueza ficará de acordo com o seu desejo. Esta segunda interpretação é muito grave porque gera uma insegurança quanto à natureza da nossa governança e do regime de política macroeconômica. Eu não sei qual é a interpretação correta, o que motivou isso. Pode ser que o governo não esteja iniciando um processo de fechamento de conta de capital para os residentes brasileiros. Mas, ao tomar essas medidas, o próprio governo acabou gerando essa dúvida. E isso terá impacto sobre o equilíbrio da taxa cambial e a inflação, o que vai atrapalhar o Banco Central. É muito ruim.

A revisão de alta das despesas foi significativa, com acréscimo de R$ 25,8 bilhões, principalmente na Previdência e no Benefício de Prestação Continuada (BPC). Nesse cenário, o quanto estamos longe de um ajuste fiscal sustentável?

Estamos bem longe. Tão longe que não se consegue chegar a um diagnóstico consensual a respeito. Do ponto de vista aritmético, o problema fiscal é que nós temos regras que requerem que o gasto público obrigatoriamente cresça mais do que a economia. E isso é uma inviabilidade lógica. O gasto público não pode crescer eternamente mais do que a economia, principalmente porque o nível do gasto público já é muito alto para países com a nossa realidade. O problema é que a sociedade tem dificuldade de aceitar essa realidade. Para o gasto público não crescer mais do que a economia, temos de manter durante muitos anos o salário mínimo real em um valor constante, por exemplo.

Recentemente, o ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga foi muito criticado por ter defendido o congelamento do salário mínimo por 6 anos.

Exatamente, e eu já escrevi sobre isso. Não dá para conceder aumentos reais para o salário mínimo durante alguns anos se nós quisermos que o gasto público cresça a uma velocidade pelo menos igual à da economia. As regras de vinculação do gasto com saúde e educação à receita também acabam impedindo o ajuste fiscal. Temos de mudar a forma como vinculamos esses gastos à receita. Não faz sentido, inclusive, vincular linhas do gasto à receita. Temos de vincular linhas do gasto público a outros indexadores, porque a receita é muito volátil e o gasto com saúde e educação não é volátil. Todas essas questões são polêmicas, e a sociedade tem muita dificuldade de lidar com elas. Mas um ajuste fiscal de verdade passa por enfrentá-las. É por isso que eu acho que um ajuste sustentável ainda está muito distante. Um ajuste mais definitivo passaria pela sociedade enfrentar esses temas. As pessoas ficam muito incomodadas com essa realidade. A sociedade quer que a economia entregue uma coisa que a economia não é capaz de entregar.

O senhor tem alertado reiteradamente sobre a trajetória insustentável da dívida pública brasileira, que pode se aproximar de 90% do PIB até 2027, inviabilizando a capacidade de investimento. Este é um caminho sem volta ou ainda há o que possa ser feito para evitar o colapso?

Não acredito que haja um ponto de não retorno na política fiscal. Sempre dá para arrumar, desde que a sociedade entenda os problemas, que se faça um diagnóstico e que se queira, de fato, arrumar. A questão é: será que a sociedade vai aprender ou, antes que isso ocorra, teremos de passar por mais um evento inflacionário ou por mais uma crise fiscal, com seus impactos sobre crescimento, emprego etc.? Sempre dá para arrumar, tecnicamente. Sempre tem solução.

Qual é a solução?

A solução envolve uma economia política complexa e também a sociedade compreender e aceitar algumas restrições. Se a sociedade não aceitar essas restrições, vamos caminhar para uma crise. E precisaremos ver se, com a crise, haverá um processo de aprendizado ou não.

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