Sucessão familiar impulsiona a prosperidade no campo

Assim como em outros segmentos do mercado de trabalho, o setor primário precisa reter talentos. Mas diferentemente de empresas que captam currículos, no meio rural a mão de obra costuma estar literalmente dentro de casa. Com 70% dos alimentos que chegam à mesa dos brasileiros produzidos por famílias de agricultores, o processo de sucessão no campo tem sido uma preocupação atemporal. Sendo responsável por quase um quarto do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro, o agronegócio aumenta ano a ano a relevância que ocupa na economia e torna o tema ainda mais pertinente.

Estimulada pelo sistema cooperativo, família Zambiasi reúne diferentes gerações na propriedade leiteira | abc+



Estimulada pelo sistema cooperativo, família Zambiasi reúne diferentes gerações na propriedade leiteira

Foto: Divulgação

No Rio Grande do Sul, o ramo agropecuário foi o principal responsável pelo crescimento de 4,9% do PIB no ano passado. Logo, a economia gaúcha depende das futuras gerações de produtores. O problema é que o êxodo rural, que se intensificou nas décadas de 1970 e 1980 com a industrialização, ainda preocupa. Entre os censos de 2010 e 2022, mais de 233 mil pessoas deixaram áreas rurais no Estado. É como se o campo tivesse perdido a população inteira de Novo Hamburgo, na região metropolitana. Enquanto isso, o meio urbano seguiu crescendo.

Para estimular a continuidade dos negócios nas propriedades e fazer com que o jovem finque raízes no campo, poder público, sociedade civil e organizações que atuam na área somam esforços. Entre os principais agentes de transformação deste cenário estão as cooperativas. Dentro do Sistema Ocergs, que representa o segmento no Estado, cerca de 270 mil pessoas estão ligadas diretamente a cooperativas do ramo agropecuário.

Presidente do Sistema Ocergs, Darci Pedro Hartmann fala com conhecimento de causa sobre sucessão familiar. Enquanto está à frente da organização que representa as cooperativas gaúchas, a propriedade rural da família, em Cruz Alta, no noroeste do Estado, é comandada pela filha dele, Shana Hartmann, de 30 anos. Ele destaca que a continuidade da atividade precisa ser encarada como um projeto, o que pressupõe preparação e planejamento.

Hartmann explica que no âmbito do Sistema Ocergs existem projetos para atrair pessoas mais novas para o cooperativismo através de uma sucessão responsável. “Temos coordenado uma série de ações, investido no assunto tecnologia para trazer o público jovem”, cita, referindo-se a eventos realizados no início do ano, como a Expoagro e a Expodireto, que reuniram jovens ligados ao segmento.

No cooperativismo, o tema sucessão tem sido trabalhado em duas frentes. Uma delas busca sensibilizar os jovens para a continuidade dentro do sistema cooperativo. A segunda, cita Hartmann, é o incremento da tecnologia dentro dos processos na atividade rural.

“Evidentemente que temos que preparar as pessoas da família, os pais, os mais idosos, os que estão na atividade econômica no momento, eles têm que gradativamente desocupar ou deixar espaço para que o jovem possa fazer o seu trabalho”, observa. “E nós entendemos que essa inserção é muito interessante pela via tecnológica. Hoje, com a gestão da propriedade, a tecnologia, a informação, o telefone, o computador, as pessoas mais idosas têm mais dificuldades. Isso cria uma bela oportunidade para os jovens, gradativamente, ocuparem esse espaço”, sugere.

Darci Pedro Hartmann, presidente do Sistema Ocergs | abc+



Darci Pedro Hartmann, presidente do Sistema Ocergs

Foto: Sistema Ocergs/Divulgação

Comitês jovens desenvolvem lideranças

Além do debate sobre sucessão em eventos, o Sistema Ocergs implantou em 2023 um comitê chamado Geração C, cujo objetivo é mapear jovens protagonistas e promover a criação de grupos dedicados à sucessão familiar dentro das cooperativas. “A ação busca engajar, capacitar e desenvolver jovens lideranças”, pontua Hartmann.

Quem coordena o Geração C no Estado e também a nível nacional é a produtora rural Larissa Zambiazi, de 27 anos. Ela ingressou em 2016 na faculdade de Gestão de Cooperativas. De lá para cá foi jovem embaixadora do cooperativismo brasileiro e participou da criação de comitês de jovens dentro da Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB) e do Sistema Ocergs. Atualmente, é associada de uma cooperativa agropecuária, duas de trabalho, produção de bens e serviços, além de duas de crédito.

Para ela, este estímulo à participação dos mais novos impulsiona a renovação e a continuidade dos negócios, seja no campo ou fora dele. “O intuito é fortalecer a representatividade. O Geração C representa os seis ramos do cooperativismo, com jovens de 18 a 35 anos. No Rio Grande do Sul, todas as regiões estão representadas”, explica. Ela aponta que cada integrante vira uma espécie de embaixador em sua região, estimulando a criação de espaços semelhantes.

“O comitê não só desenvolve futuras lideranças, mas é um reforço e uma oxigenação ao quadro social”, defende Larissa. Ela considera que estes espaços são fundamentais para a sobrevivência das próprias cooperativas e vitais para o fortalecimento de segmentos econômicos essenciais, como o agronegócio. “Nós, jovens, devemos buscar a participação e opinar, sugerir, aprender, não com o intuito de tomar a cadeira de alguém, mas sim de agregar a nossa vitalidade à experiência e ao conhecimento que as lideranças atuais têm há muitos e muitos anos.”

O Geração C já apresenta avanços, como a criação de programas específicos para o público jovem, mas também existem outros espaços a serem conquistados. Hartmann menciona que ainda é preciso incentivar que os mais novos participem efetivamente das lideranças, conselhos e diretorias dentro das cooperativas. “Isto é uma construção. Porque se você coloca o jovem sem estar preparado para a atividade, você vai ‘queimá-lo’. É preciso trabalhar de forma muito séria na preparação para que, quando chegar a oportunidade dele ocupar esses espaços, possa estar preparado”, enfatiza o presidente do Sistema Ocergs.

Família Zambiasi colhe frutos da sucessão feita com harmonia e critérios claros | abc+



Família Zambiasi colhe frutos da sucessão feita com harmonia e critérios claros

Foto: Arquivo Pessoal

Com um pé na propriedade e outro na cooperativa, Larissa prospera e inspira

Primogênita entre três de irmãs, Larissa se criou em meio a vacas leiteiras na propriedade da família Zambiasi em Coqueiros do Sul, no noroeste do Estado. Os pais Dilamar, 57 anos, e Marilin, 57 anos, contavam orgulhosos que começaram a produção com um animal emprestado pelo avô materno dela. A rotina na fazenda era assunto com os colegas em sala de aula, mas a menina não pensava em trabalhar no campo quando criança. O sonho dela era ser professora ou enfermeira. O sonho dos pais era formar as três filhas na faculdade.

Mas o mundo muda e Larrissa também. Ainda na adolescência começou a perceber que viver da atividade leiteira não era má ideia. A vocação pela lida no campo se fortalecia. Mas os planos não se alteraram totalmente. A ideia de colocar o ensino superior no currículo vingou com louvor: graduação em Gestão de Cooperativas, com mestrado em Desenvolvimento Rural. E não foi a única. Daniele, 22 anos, concluiu Medicina Veterinária. Gabriele, 22 anos, Direito.

Se em outros tempos o estudo podia virar um caminho para que os filhos deixassem o interior, isso não é mais realidade. Afinal, o mundo muda. Hoje em dia é preciso conhecimento para tornar uma propriedade produtiva e rentável. Por isso, a família Zambiasi iniciou em 2017 o processo de sucessão familiar. “A gente foi estruturando e profissionalizando aos poucos. No início, muitas coisas eram restritas, a gente não tinha acesso a alguns dados financeiros, não tinha um salário” lembra Larissa.

Neste processo de amadurecimento, a produtora de leite destaca o papel das cooperativas. “São elas que, muitas vezes, levam as inovações para o campo. Se a gente analisar, ter um técnico da cooperativa, semanalmente, conversando sobre planejamento, sobre futuro, com duas gerações diferentes, isso tem um papel importante. Muitas, inclusive, têm programas dedicados a isso. Então, este processo de continuidade familiar vai sendo construído”, analisa a jovem associada à Cotrisal, de Sarandi, no norte gaúcho.

Na lida e na faculdade

Dilamar e Marilin sempre se mostraram receptivos à continuidade das filhas nos negócios da família. Mas tinham uma exigência. “No princípio da sucessão, a mãe dizia: ‘estuda porque se um dia a propriedade não der certo, tu tem o estudo”, recorda Larissa. “Era como uma segunda alternativa, mas aproveitamos demais as formações. Isso permitiu que a gente fizesse inúmeras mudanças, com metodologias que aprendi com a gestão de cooperativas, para facilitar as tarefas”, observa. “A gente viu que este investimento em educação retorna”, avalia a produtora.

Só que este retorno exigiu doses de sacrifício, ou melhor, de leite. Nos últimos nove anos, a família investiu em formação mais de cem mil litros de leite, na “moeda corrente” dos Zambiasi. “Nunca tivemos bolsa. Tudo foi pago com a produção”, orgulha-se Larissa.

A jovem produtora afirma que mesmo num contexto costumeiramente masculino, ela e as irmãs nunca sentiram preconceito em relação ao gênero. “Sei de mulheres que enfrentaram desafios. Mas no nosso caso, a gente sempre deu a cara a tapa, subiu no trator muito cedo. Conquistamos a confiança das pessoas e nosso espaço, não dando lugar para desconfiança.”

Terceira geração vem aí

Se a propriedade está bem encaminhada com as irmãs Zambiasi, a terceira geração parece seguir os passos. Sobrinho de Larissa, Valentin, 3 anos, já se sente parte do lugar. “Ele está numa idade que não dá para atribuir muitas responsabilidades. A gente tenta cativar ele, levando junto para as lidas”, explica. “Muitas vezes, sei que ele vai virar o carrinho de ração no chão, fazer bagunça, mas se eu partir para o xingamento, dizer que não pode, como é que ele vai se engajar, gostar do que a gente faz? Estamos vivendo esta fase de aproximação”, ensina.

Com afeto pelos mais novos e reverência pelos antigos, Larissa analisa que estimular a sucessão e o protagonismo feminino no meio rural é fundamental para o fortalecimento das próprias cooperativas e do agronegócio. “Quando se investe na continuidade familiar, se tem um quadro social renovado, que fortalece as organizações e a economia como um todo.”

Larissa concilia atuação como líder cooperativista com o trabalho na propriedade dedicada ao gado leiteiro | abc+



Larissa concilia atuação como líder cooperativista com o trabalho na propriedade dedicada ao gado leiteiro

Foto: Arquivo Pessoal

Produtora repassa o que aprendeu para outras famílias

O convívio com o rebanho divide espaço com a atuação de Larissa como líder cooperativista. E assim como aconteceu na atividade leiteira, esta relação também passou dos pais para as filhas. “Desde criança, isso sempre esteve presente no meu cotidiano. Hoje, sou líder concorrendo à chapa para conselheira fiscal para cooperativa de crédito.”

Desta relação umbilical e da própria formação, Larissa realizou um dos sonhos de criança e virou professora do curso Aprendiz Cooperativo do Campo, oferecido pelo Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo do Estado do Rio Grande do Sul (Sescoop/RS) com a Cooperconcórdia, voltada ao trabalho educacional. “Foi através dele que tive acesso a experiências e exemplos de dinâmicas familiares muito diversas e distintas, que me ajudaram a construir o plano de continuidade familiar. Isso virou palestra, curso, treinamento”, enumera.

Inicialmente, a metodologia criada por Larissa foi aplicada a 36 famílias do Estado, tendo como pilares melhorar a convivência, aproximar diferentes gerações e estimular o processo de continuidade. Hoje em dia, 150 já colocaram o plano em prática. “Não diria que assegura a sucessão, mas facilita o processo e a integração entre as gerações”, atesta.

Equilíbrio entre o trabalho no campo e a atuação de liderança

Mas e o trabalho na produção leiteira, como fica? “Esta conciliação acontece através de uma governança estruturada. Fiz acordo com os meus pais, abri mão de metade do meu salário para que pudesse atuar como líder cooperativista, ser professora, palestrante, me envolver nos grupos de jovens. Acordo para salário, folgas e férias”, explica Larissa.

Para ela, este protagonismo “fora da porteira” agrega no negócio da família. “Não me canso de ver bons exemplos fora da propriedade que acabo trazendo para cá. Isso só acontece porque eu tenho esta flexibilidade. A gente vive neste equilíbrio, entre a experiência de quem está há 30 anos tocando o negócio, com estas informações que trazemos de fora.”

E com o apoio da nova geração, os Zambiasi saltaram de 21 para 50 hectares, com produção de grãos para silagem e, principalmente, do leite. Até Larissa conseguiu um pedacinho de terra só dela. “Juntei dinheiro durante sete anos. No começo eram 50, cem reais, depois comecei a dar palestra e aula, consegui mais um pouco. Como morava com meus pais, gastava pouco”, relembra. Para a produtora, conquistar seu pedaço de terra tem um grande significado. “Abdiquei de muitas coisas por isso.”

Aos 19 anos, Matheus Follmann toca a propriedade da família | abc+



Aos 19 anos, Matheus Follmann toca a propriedade da família

Foto: Arquivo Pessoal

Exemplo inspirou Matheus a seguir no meio rural

Matheus Gabriel Follmann, 19 anos, conheceu Larissa em uma das palestras da produtora rural sobre sucessão. A identificação com a trajetória dela foi natural. “Pude observar um amor muito grande pela atividade e pelos animais, igual eu tenho”, recorda. “Essa palestra ficou marcada em minha vida, me ensinou muito sobre como a relação com a família dentro da propriedade determina o sucesso de todos os processos”, pontua.

O encontro com Larissa ajudou Matheus a decidir seguir na atividade leiteira em Sede Nova, noroeste gaúcho, onde mora com os pais Vilson, 51 anos, e a mãe Carla, 45 anos. “Chegamos num ponto em que minhas irmãs já haviam saído de casa e eu tinha que escolher se ia ficar para dar continuidade. Na época, não havia a possibilidade de meus pais tocarem a atividade leiteria sozinhos, pois já era eu quem fazia os tratos e as ordenhas. Então, se saísse, os animais seriam vendidos”, relembra.

Outro aliado neste processo foram as cooperativas. “Me incentivaram, me deram oportunidade de conhecimento sobre os manejos e as tecnologias que estão disponíveis no mercado. Acredito que tiveram grande parte no crescimento tanto pessoal como financeiro da propriedade”, analisa o jovem produtor.

No entanto, Matheus admite que nem sempre é fácil trabalhar com os pais, que estão na atividade há 21 anos. “Muitas vezes nós não concordamos em algumas decisões, mas tentamos entrar em consenso para seguir o melhor caminho”, observa. A convivência entre diferentes gerações e eventuais divergências de ideias são desafios apontados pelo jovem produtor, que usa o diálogo como ponte. “Muitos manejos, tecnologias e serviços, meus pais não têm conhecimento, e isso acaba dificultando a entrada dessa ‘evolução’. Mas sempre tento explicar a importância disso. Se é acessível e viável economicamente, implantamos.”

Atualmente, Matheus trabalha na propriedade ao lado dos pais e do namorado, o médico veterinário Jhohann Izoton, 25 anos. Hoje, a produção gira em torno de 1 mil litros de leite por dia, com uma média de 37,88 litros vaca/dia em sistema de freestall – um dos métodos de confinamento de gado leiteiro. Além do leite, a família trabalha com suinocultura e produção de grãos.

Com mais harmonia e diálogo em casa, Matheus traça planos. “Meus objetivos profissionais são me especializar cada vez mais para ser ainda mais eficiente nos manejos. Na propriedade, a busca é por eficiência em todos os processos, obter resultados econômicos melhores e, o mais importante, gerar uma qualidade de vida para minha família através da nossa atividade, que hoje é uma empresa para nós.”

Keila (direita) participa do Comitê Geração C ao lado de Larissa | abc+



Keila (direita) participa do Comitê Geração C ao lado de Larissa

Foto: Divulgação

No berço do cooperativismo, gente que coopera cresce

Companheira de Larissa na luta pela inserção do jovem, Keila Koehler, 26 anos, é a prova de que o ecossistema do cooperativismo estimula constantemente a renovação, seja numa lavoura, seja dentro de um escritório. Nascida e criada no interior de Nova Petrópolis, na Serra, Keila vive em uma propriedade onde a família planta e cria animais para subsistência. No entanto, a lida da jovem não é no campo. É dentro de uma agência da Sicredi Pioneira que ela ajuda a transformar a vida das pessoas, inclusive de quem tira o sustento da terra. Somente no ano passado, a carteira agro do Sicredi alcançou R$ 101 bilhões no País.

Mas até chegar no ponto de Keila virar gerente de negócios, muito chão foi percorrido. Foi em 1902 que o padre suíço Theodor Amstad fundou a primeira cooperativa de crédito do país. E adivinha onde? Justamente em Linha Imperial, onde Keila vive. A chamada Caixa Rural virou Sicredi Pioneira e Nova Petrópolis ganhou o título de Capital Nacional do Cooperativismo pelo marco criado por Amstad. Atualmente, Linha Imperial tem uma série de monumentos e até roteiro turístico dedicado ao feito do padre.

Foi dentro deste contexto histórico que Keila se desenvolveu. Ela aprendeu a ler, vejam só, na Escola Padre Amstad. E foi no colégio que começou a ter acesso, de fato, ao universo do cooperativismo. Em 2012, participou de uma das primeiras edições do Cooperativa Escolar, programa desenvolvido pelo Sicredi que estimula a criação de organizações do modelo pelos alunos.

Na Cooeamstad, a menina tímida, que não ousava falar em público, foi desafiada a fazê-lo. E de tantos desafios pegou gosto. “Para mim isso fez total diferença, ajudou a me transformar como pessoa. Quem me conhecia antes da cooperativa escolar sabe o quanto eu era tímida, simplesmente travava ao falar em público, até para uma apresentação em sala de aula”, relembra. “Sempre tive um forte vínculo com o Sicredi por toda questão social. Participei do União Faz a Vida (programa voltado à cooperação e cidadania), do Cooperativa Escolar, fiz cursos de educação financeira. Foi uma escola”, salienta.

Trajetória que a levou de maneira natural a trabalhar na cooperativa de crédito. “As pessoas sempre ficavam me dizendo que tinha a ‘cara’ do Sicredi. Fiz seleção, comecei como estagiária, assistente de atendimento, gerente de negócios. Isso tudo começou lá atrás, com a Cooeamstad”, pontua.

Aliado ao trabalho, a faculdade e as especializações inseriram Keila ainda mais neste universo. Além de participar do Comitê Nacional da OCB, ela é uma das integrantes do Geração C no Estado, estimulando outros jovens a manterem vivas as cooperativas. “Eu sou uma das provas que o cooperativismo transforma vidas.”

Com esta consciência, a jovem do interior de Nova Petrópolis sabe o poder que cada um tem para fortalecer este ecossistema e, por tabela, o agronegócio gaúcho. “A gente pode ajudar indo ao mercado e optando por produtos feitos por cooperativas, enraizando a questão do consumo local, priorizando serviços de associados.” Afinal, como ensina a empresa criada por Padre Amstad, gente que coopera cresce.

Diretoria da Cooecampo tem encontro regulares em Ivoti | abc+



Diretoria da Cooecampo tem encontro regulares em Ivoti

Foto: Susana Leite/GES-Especial

Liderança se aprende em sala de aula

Outro exemplo de construção de futuras lideranças está no currículo da Escola Municipal de Ensino Fundamental (Emef) Nelda Julieta Schneck, em Ivoti, no Vale do Sinos. A instituição integra um conjunto de escolas de campo do município, formado ainda pela Olavo Bilac e Nicolau Fridolino Kunraht. Juntas, elas deram origem à Cooperativa das Escolas de Campo (Cooecampo), iniciativa nascida em 2013 dentro do programa do Sicredi que visa ampliar as oportunidades de aprendizagem, através da vivência de um modelo cooperativo.

“A ideia é trabalhar com os pequenos até o 9º ano para que eles saiam da escola minimamente valorizando o meio rural, entendendo que o lugar onde eles moram tem valor, que aqui se produz conhecimento, que tem potencial de gerar renda e de permanecer. E a cooperativa escolar caminha junto neste processo”, explica a diretora da Emef Nelda, Carine Dörr. “Depois, se eles tiverem interesse, podem ir para um curso técnico e se aperfeiçoar para poder trabalhar”, pontua.

Professora de Ciências na escola, Cândida Cristina Klein explica que a sucessão familiar faz parte do currículo das turmas de 8º e 9º anos. São abordadas perspectivas profissionais no meio rural, o que engloba questões como tecnologias do agronegócio e empreendedorismo. É neste ambiente que aluna do 9º ano da Nelda, Amanda Schmitt, 14 anos, divide seus interesses entre robótica e hidroponia. Mais do que cultivar alfaces num sistema à base de água, o ensino proporciona que Amanda aprenda que é possível empreender no setor primário. O que os alunos desenvolvem se converte em produtos que são comercializados no município. E a renda é revertida para as turmas.

Atualmente, as turmas desenvolvem um projeto de turismo rural, que envolve estudantes e moradores do interior. Ex-aluno da Nelda e ex-presidente da Cooecampo, o estudante do ensino médio Henrique Schmitt, 15 anos, trabalha lado a lado com o pai e o irmão mais velho na propriedade. A vida no setor primário sempre foi uma certeza para o jovem.

“Meu pai sempre me motivou, principalmente com as histórias dele. Isso sempre me incentivou e fez me interessar mais pela silvicultura”, afirma. O apoio da família não se limitou a contar histórias. Henrique também adquiriu conhecimento suficiente para enxergar nos hectares de acácia negra, cultivados desde seu avô na localidade de Nova Vila, em Ivoti, o próprio futuro.

O adolescente não tem dúvidas de que aquilo que aprendeu na Emef Nelda e dentro da Cooecampo serviu de base para continuar o trabalho da família. Ele atesta que o interesse pela agricultura vem desde a infância, mas reconhece que a escola e a experiência na cooperativa fortaleceram essa visão. “Acredito que me ensinou a ter uma rotina estruturada hoje na propriedade. A gente se organiza uma semana antes e isso pude trazer da Cooecampo para a silvicultura. E quando fui presidente, aprendi a liderar e a gerenciar as atividades”, destaca.

Do aprendizado na escola, o jovem compartilhou alguns conhecimentos para a família e implantou na propriedade. “Nosso trabalho ficou bem mais eficiente. Acredito que algumas das mudanças foram na inserção de plantio de algumas culturas, com a cobertura de solo e a rotação de culturas”, conta Henrique, que também já foi guia de turismo rural dentro da propriedade.

Cooecampo estimula o empreendedorismo em jovens como Amanda | abc+



Cooecampo estimula o empreendedorismo em jovens como Amanda

Foto: Susana Leite/GES-Especial

Estímulo ao turismo rural

Em uma das atividades realizadas através do projeto de turismo rural da Cooecampo, Henrique foi o guia de um grupo de estudantes. Ali, o ex-aluno da escola de campo mostrou como é o trabalho, as dificuldades e os detalhes da vida no meio rural. A inserção da propriedade dedicada à silvicultura e outros plantios no turismo rural foi um elo construído por meio da cooperativa escolar.

Conforme a professora-orientadora Marisa Kalkmann, a escolha das propriedades que farão parte do roteiro ocorre de acordo com o que os alunos estudam. “A gente sempre prioriza que não seja uma visita por visitar, mas que sempre agregue na questão da aprendizagem.”

O projeto atrai a atenção de estudantes até de outras cidades. Neste ano, professores de Caxias do Sul estiveram no município para conhecer a iniciativa. “Se outra cooperativa quiser nos visitar e fazer essa intercooperação, que faz parte dessa metodologia que o Sicredi proporciona, nós estamos disponíveis”, ressalta a professora, lembrando que no ano passado um grupo de uma cooperativa de Nova Petrópolis esteve em Ivoti para fazer o passeio do turismo rural.

Legado construído desde o bisavô

Outra integrante da Cooecampo, a estudante Kamilly Petry, 13 anos, também enxerga seu futuro na propriedade da família. A pecuária leiteira iniciou pelo bisavô de Kamilly e é este legado que ela pretende manter. Mesmo ainda na condição de ajudante no manejo das vacas, ela descreve em detalhes o plantel da produção da leiteira. “Temos 30 vacas, contando as novilhas; 15 estão em lactação. E elas dão em torno de 350 litros de leite por dia”, detalha.

A descrição do trabalho na ponta da língua também serve para receber os visitantes no local. O sítio da família Petry integra o roteiro do projeto Turismo Rural da Cooecampo. Outros membros da cooperativa escolar também fazem as vezes de guia em suas propriedades quando ocorrem as visitas.

Para Kamilly, assim como para Henrique, o exemplo de casa e as lições da escola e da cooperativa serviram para reforçar a escolha deles pela permanência na atividade rural. “Quando meu bisavô trabalhava, meu avô já ajudava ele… Quero continuar para poder contar a história sobre como tudo isso começou”, explica a estudante sobre a motivação. “E nas escolas de campo, a gente sempre aprendeu sobre sucessão familiar, a trabalhar no meio rural, e acredito que isso também me incentivou a querer continuar na atividade”, afirma.

Aluna da Emef Nelda, Kamilly recebe estudantes dentro do projeto de turismo rural | abc+



Aluna da Emef Nelda, Kamilly recebe estudantes dentro do projeto de turismo rural

Foto: Cooecampo/Divulgação

Diferentes incentivos partem da mesma cooperativa

Com uma atuação que vai além do aspecto financeiro, a cooperativa Sicredi reúne diferentes ações e projetos que convergem no apoio ao desenvolvimento das comunidades onde atua. O incentivo às cooperativas escolares é um exemplo, como uma espécie de semente que faz florescer diferentes protagonistas. Outro é o União Faz a Vida, no qual a Coopecampo também faz parte. Trata-se do principal programa de educação do Sicredi voltado à cooperação e cidadania.

A cooperativa financeira mantém ainda outras iniciativas focadas na permanência das famílias no meio rural. Fomentado pela Sicredi Pioneira, cuja sede fica em Nova Petrópolis, o programa Sucessão Rural Familiar é específico para incentivar a permanência dos jovens no campo. Quem participa aprende sobre gestão das propriedades, profissionalização, liderança e empreendedorismo. A iniciativa já ajudou mais de 150 famílias a fincarem raízes no campo.

Assessora da área responsável pelo programa, Carla Cristiane Ferreira explica que o incentivo à sucessão começou pela preocupação com o esvaziamento que o meio rural vinha sofrendo. Com a participação de sindicatos e entidades como a Emater, elaborou-se um projeto-piloto com famílias indicadas que tinham potencial de sucessão. “Hoje o programa está estabelecido em nove módulos teóricos e três visitas técnicas nas propriedades. Percebeu-se que deveria fomentar o empreendedorismo porque as propriedades não se viam como empresas”, aponta Carla.

Coordenadora de Atuação Social e Educacional da Sicredi Pioneira, Alini Cossul Martinelli, que acompanha o desenvolvimento do programa, analisa que, mais do que reorganizar o sistema de gestão das famílias, o curso tem a capacidade de resgate do orgulho de ser agricultor. “Precisamos de agricultores. É uma questão de sustentabilidade, de sobrevivência”, afirma Alini.

Carla e Alini admitem que este processo de sucessão enfrenta desafios. De um lado, a experiência de quem está há décadas na atividade; de outro, uma geração com expectativas e, muitas vezes, vontade de fazer diferente. “Tem a ânsia do jovem de trazer tecnologia, mas muitas vezes isso não respeita o histórico da família. É por isso que no curso se faz questão que venham todos os que moram na propriedade. Porque tem o lado do jovem, mas também o dos pais, com seu senso de pertencimento”, aponta Carla, explicando que o desafio está no equilíbrio dos dois mundos.

Turmas do programa de Sucessão Rural Familiar participam de nove módulos de atividades | abc+



Turmas do programa de Sucessão Rural Familiar participam de nove módulos de atividades

Foto: Sicredi Pioneira/Divulgação

Das frutas do pomar para a agroindústria

Em maio, a agroindústria da família Knob, de São José do Hortêncio, no Vale do Caí, completa cinco anos. O empreendimento é resultado do trabalho feito através do Programa de Sucessão Rural Familiar da Sicredi Pioneira. O início das atividades também marca uma virada nos negócios da família, que sempre viveu da agricultura.

Foi durante a pandemia de Covid-19 que Jairo Luís Knob, 37 anos, e a esposa Dalvana Luft, 38 anos, repensaram a vida que queriam para o futuro. Eles tinham empregos no comércio e na indústria, mas também uma relação com a agricultura. O pai de Jairo, Edgar José Knob, 75 anos, possuía mais de 60 anos de experiência na lavoura. E foi olhando para própria terra que o casal decidiu mudar de rumo. Assim, abririam uma agroindústria de geleias a partir do processamento de frutas. Conversa daqui com a prefeitura, conversa dali com a Emater e acabaram chegando ao programa da Sicredi Pioneira em 2022.

“O programa de sucessão rural familiar foi um abrir de olhos”, diz Jairo, ao explicar que a metodologia do curso ampliou a percepção sobre empreendedorismo. Ele afirma que hoje as especialidades que a agroindústria possui, como geleias sem açúcar e a linha gourmet, por exemplo, foram elaboradas graças aos conhecimentos do curso. “Além de nos abrir os olhos, mostrar uma nova forma de ver o mundo e como a gente deve se portar nele, ajudou na organização, na disciplina e na gestão do tempo”, enumera.

Hoje trabalham na atividade Seu Edgar, além da mãe de Jairo, Melita, 61 anos, e dos pais de Dalvana, Classi, 66 anos, e Inácio Luft, 70 anos. Eles atuam no trabalho da propriedade, principalmente, no cultivo de aipim, cana-de-açúcar e nos pomares, que produzem 17 variedades de frutas que servem de matéria-prima para as geleias e doces. Diretamente na agroindústria, atuam Jairo e Dalvana, que são pais de Bertha Helena, de 4 anos.

Dalvana, Bertha e Jairo vivem da agroindústria familiar | abc+



Dalvana, Bertha e Jairo vivem da agroindústria familiar

Foto: Arquivo Pessoal

Jairo lembra que as aulas do curso de Sucessão Rural Familiar ocorreram entre 2022 e 2023, com encontros presenciais aos sábados. “Todo sábado de manhã a gente se encontrava com outras famílias de outros municípios para falar, aprender e compartilhar”, recorda-se. Entre os aprendizados, destaca a organização do empreendimento. Ele diz que a partir do curso começou de fato a enxergar e a gerir a atividade como negócio. Assim foi assimilando ao seu dia a dia a contabilidade, a gestão do tempo, organização e a visão do empreendimento. “A gente passa a enxergar que o mundo oferece e as oportunidades.”

Estado desenvolve programas de apoio

Na busca por estimular a sucessão rural, o poder público também tem seu papel. No governo do Estado, iniciativas neste sentido são adotadas pela Secretaria de Desenvolvimento Rural (SDR). Uma delas é o programa Bolsa Juventude Rural, que oportuniza ao jovem o acesso e a permanência no ensino médio, bem como potencializa a permanência dele no campo e a sucessão, por meio da implantação de projetos produtivos.

Desde o ano de 2013 foram disponibilizadas 2.748 bolsas, que foram acessadas por jovens de 263 escolas de 214 municípios. Apenas nos últimos dois anos, foram disponibilizados mais de R$ 1 milhão para o programa. Levantamento aponta que 77% dos beneficiados investem o valor da bolsa exclusivamente no projeto produtivo apresentado. Para a SDR, isso aponta que o programa cumpre um dos principais objetivos, que é a sucessão rural.

Dentro do programa Agrofamília, a SDR destinou R$ 6 milhões para apoio a projetos desenvolvidos por jovens da agricultura familiar. Os 244 classificados poderão comprar máquinas, equipamentos e insumos para as mais variadas cadeias agropecuárias. Devido à alta demanda, com quase 10 mil inscritos, o governo do Estado está programando um aporte de recursos complementar para a iniciativa. “A partir destas ações, estamos estimulando a sucessão rural no setor agropecuário ao apoiar os jovens”, defende o secretário de Desenvolvimento Rural, Vilson Covatti.

Diretora da Comissão Estadual dos Jovens Trabalhadores Rurais, Camila Rode participou das discussões dentro do programa Agrofamília. Para ela, os quase 10 mil inscritos dão uma dimensão do tamanho da demanda. “Mostra a necessidade de ter alternativas para que o jovem possa usufruir de um recurso do Estado que vai resultar em mais geração de renda. É um investimento.” Ela aponta que isso reforça a necessidade de criação de políticas públicas específicas para este público. “Muitos ainda não têm bens no nome, não têm patrimônio, a renda não é tão alta, mas precisam de incentivo para continuar produzindo.”

Cerca de 90% dos estudantes da Escola Família Agrícola de Vale do Sol permanecem no meio rural | abc+



Cerca de 90% dos estudantes da Escola Família Agrícola de Vale do Sol permanecem no meio rural

Foto: Divulgação

Secretaria estadual firma parceria com escola agrícola

Outra iniciativa de apoio público a projetos de estímulo à sucessão rural é o termo de colaboração firmado pela SDR com a associação responsável pela Escola Família Agrícola de Vale do Sol (Efasol), que fica no Vale do Rio Pardo. A proposta busca ajudar na formação dos alunos, estimulando a permanência deles no campo. Serão atendidos 50 jovens e suas famílias. Os R$ 249 mil aportados pela SDR vão se somar aos R$ 51 mil destinados pela associação e vão servir para a realização de oficinas, visitas técnicas e intercâmbio de formação.

Ex-presidente e porta-voz da associação responsável pela Efasol, o técnico agrícola Régis Solano afirma que quase 90% dos egressos da escola permanecem no meio rural. Ele explica que a instituição nasceu a partir da experiência positiva na cidade vizinha, Santa Cruz do Sul. “Lá tinha uma escola do mesmo modelo, eu mesmo fiz as aulas lá. Como tinha muita gente de Vale do Sol que ia estudar em Santa Cruz, começou a mobilização para trazer uma EFA para cá”, resume. Assim, em 2012 se criou a associação e em 2014 a Efasol.”

Solano explica que a metodologia de ensino é a pedagogia da alternância. Nela, durante uma semana os alunos ficam em regime de internato na escola e na outra vão colocar em prática o que aprenderam nas propriedades das famílias. Este processo de formação aproxima o jovem do contexto onde está inserido. “Eles trazem dúvidas que vivem no dia a dia para a Efasol. Visitamos cada propriedade duas vezes ao ano”, complementa.

O técnico agrícola destaca que convênios como o firmado com a SDR e prefeituras são fundamentais para a manutenção do trabalho. “A escola sobrevive de diferentes parceiros. Hoje temos mais de cem estudantes de 16 cidades da região e mais de 200 egressos. Para mim, a experiência foi um divisor de águas e acredito que para muitos dos nossos alunos também.”

Valorização do jovem segura a mão de obra no meio rural

Outro exemplo de preparação do jovem para a sucessão familiar está no trabalho desenvolvido pela Emater/Ascar no Rio Grande do Sul. Somente no ano passado, nas contas da coordenadora do Trabalho com Juventude e Mulheres Rurais da Emater, a extensionista Clarice Vaz Emmel Bock, em torno de 27 mil jovens participaram das ações realizadas. “Nosso trabalho é multidisciplinar e abrangente, aborda tanto as questões técnicas quanto sociais, pessoais, ambientais”, explica Clarice.

Encontros, visitas, oficinas e cursos são algumas das atividades realizadas pela Emater com foco no público jovem. Entre elas, o projeto Juventude do Campo em Movimento, lançado durante a última Expodireto, em março deste ano. Clarice explica que a iniciativa trabalha com a diversidade dos jovens. “No meio rural, tem indígena, quilombola, assentados da reforma agrária, pescadores, agricultores, pecuaristas, além das diversidades de gêneros, e todos eles precisam ser olhados. Hoje em dia a gente não pode fechar os olhos para essas questões”, pontua.

Por meio do Juventude do Campo em Movimento, pretende-se alcançar residentes nas 12 regiões onde a Emater atua. Estão previstas ações de formação, encontros, excursões, atividades esportivas e culturais. “Trabalhamos não só a parte da produção. Precisamos tratar de outras questões além desta. Primeiro, escutamos o jovem para depois prepararmos as ações”, observa Clarice.

A extensionista afirma que, das escutas que já foram realizadas, o aspecto que mais aparece é a valorização do trabalho dos jovens na propriedade. “Eles querem ser reconhecidos como alguém que está trabalhando e que tem direito a uma remuneração”, detalha. Pela experiência na área, Clarice considera que os jovens valorizam a qualidade de vida no campo. Ela compara esse momento com décadas atrás, quando a realidade era outra. “Teve um êxodo rural bem grande no passado e foi algo que deixou muita gente preocupada. As pessoas estavam indo para as cidades, ocupando as periferias. Mas hoje, com a formação profissional, isso pode mudar”, acredita.

Questões que vão muito além do negócio

Dentro do movimento sindical, a Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Rio Grande do Sul (Fetag-RS) é uma das entidades mais atuantes. Para Camila Rode, que dirige comissão dedicada aos jovens dentro da Fetag, além de questões práticas ligadas ao negócio em si, políticas públicas mais amplas são importantes para frear o êxodo no campo. “Investimentos em saúde, educação, lazer, bem-estar, a própria infraestrutura, logística, escoamento da produção. Tudo isso influencia”, aponta.

Camila alerta que questões sociais e ambientais também precisam ser observadas. Cita, por exemplo, as mudanças climáticas, que afetam cada vez mais a produção. Na educação, pondera que as escolas não podem ser apenas prédios. “Precisa de um projeto pedagógico que dialogue com a realidade local.” A saúde é outro obstáculo. “Hoje, quem mora no interior percorre longas distâncias para ter acesso a serviços especializados”, afirma.

A líder sindical pontua que questões da própria identidade precisam ser levadas em conta. “Muitos jovens saem de propriedades totalmente viáveis economicamente pela questão de orientação sexual. O campo precisa ser um espaço de acolhimento e identificação. Não apenas de geração de renda”, defende. Para ela, tornar o meio um rural um espaço acolhedor é um papel de todos. “Compete a cooperativas, sindicatos, poder público e à sociedade como um todo. Pensar nisso traz um senso de dignidade a todos que moram no meio rural.”

Do caminho entre estagiário até vice-presidente da Cotrijal, Ênio viu a transformação dos negócios no campo | abc+



Do caminho entre estagiário até vice-presidente da Cotrijal, Ênio viu a transformação dos negócios no campo

Foto: Cotrijal/Divulgação

Do arado de boi ao agro bilionário, a perspectiva no campo mudou

Filho de agricultores, Ênio Schroeder, 72 anos, é de um tempo em que se ia para escola no lombo do cavalo dada a distância. O vizinho mais próximo ficava a quatro quilômetros. Teve que sair cedo da casa dos pais para estudar. Peregrinou por cidades da região metropolitana e do Vale do Taquari até virar técnico agrícola. Com o diploma, entrou como estagiário na Cotrijal, em Não-Me-Toque, hoje a maior cooperativa agrícola do Rio Grande do Sul.

O tempo andou e aquele jovem com sotaque alemão cresceu no esteio do sucesso da cooperativa, que hoje está presente em 53 cidades e fatura por ano mais de R$ 5 bilhões. Ênio virou Seu Ênio, o vice-presidente. E é com a trajetória de quem viu colono virar produtor rural que ele observa uma mudança de perspectiva e mentalidade no campo.

“No passado, o jovem não queria ficar na propriedade e não era estimulado para isso”, admite. Num mundo com menos botões e mais suor, a lida na lavoura não era sedutora. “Era um trabalho pesado, não tinha tecnologia. Quando chegaram os tratores, não eram cabinados. Ar-condicionado? Nem pensar”, lembra Ênio.

Neste cenário de dificuldades, o trabalho na agricultura parecia algo menor. “O jovem que ia do interior para a cidade andava diferente, era motivo até de gozação porque não era bem entendido, debochavam do sotaque, parecia uma pessoa estranha. Existia um distanciamento entre o meio urbano e rural.”

Mas a ascensão do agronegócio mudou o tamanho das cooperativas, da economia gaúcha e brasileira, e de figuras como Ênio, servindo de inspiração para gerações mais novas. “A cidade começou a entender a importância do homem do campo. Se ele não produz, ninguém come”, resume o líder cooperativista.

Valorização que trouxe retorno financeiro, infraestrutura e autoestima. “Hoje está de igual para igual, tem estrutura no interior, luz e internet. O trabalho é mecanizado. Tem robôs em propriedades de 30 hectares da atividade leiteira. Se a pessoa não entender de digitalização, não trabalha numa automotriz. Você senta em cima de um trator e é um escritório com ar-condicionado. Não se come mais poeira como no passado”, avalia.

Com o agro prosperando e mais qualidade de vida no campo, teve muita gente invertendo a migração do campo para a cidade. “Há muitos casos de jovens que retornaram para fazer a gestão da propriedade da família porque vislumbraram uma nova perspectiva.”

Mudou também a mentalidade. “Houve um tempo em que os mais novos não sabiam direito qual era a função deles dentro do negócio. Recebiam um dinheiro para o fim de semana, voltavam, faziam o que os pais mandavam. Não havia sucessão, havia herança. A propriedade era vendida e aquela família ‘desaparecia’”, avalia Ênio. “Já hoje, trabalhar na agricultura não é mais sofrimento, mas um prazer, um orgulho”, define.

Aliada na continuidade familiar

Neste contexto, o trabalho de cooperativas como a Cotrijal tem sido aliado para frear o esvaziamento do meio rural. “A gente não prega cooperativismo e sucessão num gabinete. Sempre estimulamos a participação de jovens e crianças nas reuniões, a vida como ela é. Já implantamos vários modelos”, conta o vice-presidente da Cotrijal. Líderes mirins e Fórum do Jovem Cooperativista são alguns deles. Mais recentemente a aposta é no programa Supernova, que já teve quatro edições e capacitou mais de 400 pessoas com idades entre 18 e 35 anos.

“O Supernova busca quem demonstra interesse na propriedade. Antes, trabalhávamos com todos, mas muitos não queriam estar ali. Agora, por meio dos nossos agrônomos, veterinários e gerentes, identificamos aqueles que têm vocação e potencial. Assim somos mais assertivos neste processo de continuidade familiar”, resume Ênio. Cooperativismo, empreendedorismo, produção agropecuária, aspectos legais e tributários, gestão financeira e de conflitos são alguns dos conteúdos trabalhados em mais de 200 horas de capacitação.

Com a experiência de quem viveu a agricultura do arado de boi até o agro das máquinas milionárias, o vice-presidente da Cotrijal tem ciência da importância das pessoas em qualquer época. “Se tiver um, dois grandes produtores ocupando a terra, vai seguir tendo comida, mas vai se criar um problema social terrível”, pondera. “Uma sociedade mais justa passa pela agricultura de subsistência, da empresarial e pela continuidade do negócio familiar. E isso se organiza no sistema cooperativo, que só existe porque tem pessoas, tem família.”

Programa Supernova, da Cotrijal, ajudou Adriel no processo de sucessão na propriedade da família | abc+



Programa Supernova, da Cotrijal, ajudou Adriel no processo de sucessão na propriedade da família

Foto: Arquivo Pessoal

Programa da Cotrijal apoia jovens a seguirem no campo

Entre os produtores que contaram com o apoio do Supernova para seguir com o trabalho da família no meio rural está Adriel Papke, 25 anos. Com propriedade em Não-Me-Toque e áreas de cultivo em Carazinho e Coqueiros do Sul, no norte do RS, a família produz trigo, aveia, cevada, milho e soja que são depositados na Cotrijal.

Convivendo com a lida no campo desde criança, Adriel começou a assumir mais responsabilidades aos 16 anos, quando o pai Mirto, 55 anos, colocou seu nome junto no bloco do produtor. “Ali comecei a ficar um pouco mais por dentro dos negócios”, lembra. Com a maioridade, fez seu próprio bloco e arrendou uma área de terra do pai para produzir. Aos 22 anos, com a renda da área financiou um graneleiro e uma plataforma de milho. “Assim fui pegando mais o gosto pela agricultura e tendo mais credibilidade com o pai para fazer negociações de máquinas, na venda da produção e até no planejamento da próxima safra”, conta Adriel.

Se a relação de confiança com Seu Mirto foi se alicerçando como tempo, com a cooperativa não foi diferente. “Em 2016, realizei o Jovem Aprendiz do Campo na Cotrijal. Depois, em 2023, participei pela primeira vez do Supernova, quando consegui ter acesso a algumas ideias de como melhorar a gestão da propriedade e alguns manejos no campo. No ano passado, estive novamente no Supernova e tive a oportunidade de ir para o Paraná conhecer outras realidades e poder extrair ideias para colocar em prática”, pontua.

Formado em Agronomia desde 2022, Adriel teve a chance de deixar a propriedade e trabalhar em empresas do ramo. Mas o gosto pelo trabalho na agricultura e a viabilidade do negócio fizeram ele fincar raízes. A boa relação em casa também colabora. “Todos estão sempre juntos e a par do que está sendo feito, do plantio à colheita, até a parte financeira. A convivência acaba sendo bem tranquila, pois cada um sabe as tarefas que tem que fazer.”

Com o caminho a ser trilhado bem claro no horizonte, Adriel faz planos para tornar o negócio cada vez mais fértil. “Quero me especializar mais em gestão. Já tenho uma pós-graduação em Fertilidade do Solo, que me agrega muito na tomada de decisão”, afirma. “Para a propriedade, os objetivos são de, futuramente, comprar uma sede perto das áreas para facilitar a logística, além de aumentar a produtividade”, complementa.

Ao lado dos pais e do irmão, Fernanda toca a propriedade da família Burille | abc+



Ao lado dos pais e do irmão, Fernanda toca a propriedade da família Burille

Foto: Arquivo Pessoal

Com gestão e conhecimento, Fernanda ajuda a propriedade a prosperar

Fernanda Burille, 35 anos, também é um dos tantos produtores que participaram do Supernova. A propriedade da família no interior de Nova Alvorada, no norte do Estado, conta com quatro galpões dedicados à avicultura, além da produção de grãos. Ela, mais dois irmãos, os pais e uma cunhada tocam o dia a dia.

“Todos ajudam em tudo, porém cada um fica responsável por uma área. Eu cuido da parte administrativa dos aviários, um dos meus irmãos faz a gestão, um outro irmão e o pai cuidam das lavouras, e a mãe fica responsável pela casa. E tem minha cunhada, que no momento está com bebê, mas também ajudava nos aviários.” Apesar da divisão de tarefas, decisões relacionadas ao trabalho sempre são avaliadas e debatidas por todos.

Para Fernanda, o apoio da Cotrijal contribui para o processo de continuidade familiar nos negócios. “Ela incentiva e auxilia o processo de sucessão através de cursos e palestras, principalmente com o Supernova, onde são trabalhados diversos assuntos relacionados a esse tema. Assim, conseguimos entender e compreender como cada geração pensa e se sente em relação a deixar o lugar para o outro tomar conta, o que torna mais fácil esse processo”, analisa.

Aulas de gestão e inovação, além da troca de experiências e conhecimento que o curso proporciona através dos encontros presencias, reunindo jovens de várias regiões de atuação da cooperativa, são outros pontos destacados pela produtora.

Com este suporte e a boa aceitação dos pais, Fernanda avalia que a passagem de bastão na propriedade ocorre de forma natural, com os jovens assumindo mais responsabilidades. “Nossos pais ainda têm uma boa participação em decisões importantes, nos auxiliando e dando sugestões, porém está sendo tranquilo. Nosso pai é uma pessoa de mente aberta e sempre incentivou para que os filhos trabalhassem juntos.”

Esta relação harmoniosa dentro de casa é o melhor antídoto para evitar conflitos entre gerações. “Nossos pais sempre foram atrás de crescimento, estão abertos a tecnologias e inovações e incentivam a buscar conhecimento e informações”, afirma. E nesta troca, os filhos também têm muito o que aprender. “Temos toda a vivência de uma geração passada. Em vez de um confronto, há um debate sempre olhando para as melhores possibilidades. Isso ajuda a ter mais certeza das decisões que tomamos.”

Apoiada pela família, Fernanda reorganizou o escritório dedicado aos aviários, o que permitiu informações mais detalhadas, como a contabilidade dos custos de cada lote. Com mais clareza dos gastos e resultados obtidos, as decisões são mais assertivas.

Com harmonia em casa e o negócio bem encaminhado, Fernanda não pretende deixar a propriedade, mesmo graduada em Ciências Contábeis. “Sempre gostei muito do interior, da liberdade e da qualidade de vida que temos aqui, é gratificante poder trabalhar perto da família e acompanhar de perto o crescimento dos filhos. Hoje temos muitas possibilidades oferecidas pela tecnologia e informação, o que facilita muito o trabalho.”

Águeda coordena comitê do Sistema Ocergs que estimula participação das mulheres nas cooperativas e na gestão das propriedades | abc+



Águeda coordena comitê do Sistema Ocergs que estimula participação das mulheres nas cooperativas e na gestão das propriedades

Foto: Cotrijal/Divulgação

Águeda estimula outras mulheres a assumirem as rédeas nos negócios

Como demonstra Fernanda, as mulheres assumem cada vez mais um papel preponderante no processo de sucessão. Outro exemplo deste protagonismo feminino dentro das cooperativas e do agronegócio é a trajetória de Águeda Maria Kunz, 46 anos. Produtora rural da cidade de Tapera, no Alto Jacuí, Águeda conta que o caminho percorrido dentro do cooperativismo e no campo começou na infância, por meio dos pais agricultores. “Ao longo desse percurso, aprendi que o trabalho rural vai muito além de plantar e colher, é sobre construir família e comunidades, preservar tradições e inovar para o futuro.”

Neste caminho, ela semeou uma família, formada pelo marido Gilberto Maldaner e pelos filhos Guinter e Germano. E também uma luta pelo papel da mulher dentro do agronegócio. “Por muito tempo, a vida no campo foi vista como algo comandado pelos homens, especialmente quando se falava em negócios e decisões familiares. Mas isso está mudando, e para melhor. A mudança está acontecendo porque hoje as mulheres estão mais presentes nas universidades, aprendendo sobre agricultura, gestão e administração”, avalia.

E muito deste estímulo à participação de mulheres neste ecossistema vem de iniciativas desenvolvidas dentro das cooperativas. Integrante do Comitê Mais Elas, organizado pela Cotrijal, Águeda coordena ainda o Elas pelo Coop do Sistema Ocergs e participa do mesmo comitê na OCB.

No caso do Mais elas, a proposta foi criada pela Cotrijal há dez anos com a missão de valorizar e fortalecer a participação plena das mulheres na cooperativa e na gestão das propriedades. “O programa surgiu para dar voz e protagonismo a essas mulheres que, cada vez mais, estão assumindo papéis de liderança no campo e na comunidade”, complementa Águeda.

Atualmente, a iniciativa se estende pelos 53 municípios onde a Cotrijal está presente, organizada em oito núcleos regionais que são representados por 11 mulheres que integram um comitê central e são porta-voz de mais de 350 participantes. De acordo com Águeda, o objetivo vai além de oferecer capacitações técnicas. “A ideia é promover confiança, autonomia e criar um espaço onde elas se sintam reconhecidas e preparadas para enfrentar os desafios do setor”, resume.

Para isso, são desenvolvidas diversas ações, como encontros regionais e Dias de Campo, nos quais as participantes trocam experiências e discutem teoria e prática. Ainda são realizados cursos de gestão, que abordam desde temas técnicos, como manejo agrícola, até assuntos ligados à administração e tomada de decisões na propriedade; além de visitas guiadas que detalham o funcionamento de toda a cooperativa.

Já o Comitê Elas pelo Coop RS, coordenado por Águeda, foi criado em março do ano passado pelo Sistema Ocergs durante a Expodireto Cotrijal com a missão de fortalecer o protagonismo feminino no cooperativismo gaúcho. Assim como o Mais Elas, desenvolvido na área de abrangência da Cotrijal, a ideia é capacitar e desenvolver lideranças femininas.

Logo no primeiro ano, o comitê reuniu 54 mulheres de diferentes ramos cooperativistas e promoveu mais de 60 horas de capacitações, tanto on-line quanto presenciais. Para expandir a iniciativa, o Elas pelo Coop RS incentiva as cooperativas a criarem seus próprios comitês femininos. Até agora, 29 já manifestaram interesse em formar grupos internos seguindo o modelo. Cada grupo recebe apoio e ferramentas para estimular o protagonismo feminino e pode adaptar as diretrizes gerais conforme a realidade local, criando um ambiente mais justo e representativo. “A estratégia é fortalecer a atuação das mulheres em cargos de liderança e tornar o setor mais diverso e inclusivo”, observa Águeda.

Para a produtora rural, esta mudança na “fotografia” é boa para todo mundo. “Quanto mais mulheres participam, mais as famílias se fortalecem, as cooperativas crescem e o campo se torna mais próspero e equilibrado”, analisa. E quando a família toda caminha para o mesmo lado, a continuidade se mostra natural.

“O que me deixa ainda mais feliz é ver que meus filhos também estão se envolvendo com a cooperativa, que nos oferece assistência e apoio na sucessão familiar. Eles estão aprendendo desde cedo a importância de trabalhar juntos e de valorizar o que temos no campo. Isso está ajudando a garantir um futuro mais seguro para a nossa família e para a cooperativa.”

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