A longa madrugada de incertezas (por Miro Teixeira)

Era 14 de março de 1985. No leito do Hospital de Base, em Brasília, o presidente eleito Tancredo Neves sabia que corria risco de morte, mas se deixou operar somente depois que o dr.  Ulysses Guimarães recebeu a confirmação que, com seu impedimento, Sarney, o vice, assumiria.

Protagonista de acontecimentos relevantes, Tancredo sabia farejar manipulações golpistas. A Getúlio Vargas, estimulou, em vão, a resistência na reunião ministerial que precedeu o suicídio do presidente. Com a renúncia de Jânio Quadros, aconselhou João Goulart a aceitar o parlamentarismo para contornar o veto militar à sua posse. Votou contra a candidatura do Marechal Castelo Branco na primeira reunião do Colégio Eleitoral do golpe de 1964 e justificou: não admitia que alguém assumisse a Presidência da República sem o voto popular. Por uma dessas ironias da vida, lá assim ele chegou. E não assumiu. Morreu em 21 de abril de 1985. Seu legado permanece.

O 15 de março de 1985 começou em fevereiro de 1983, quando Ulysses Guimarães, presidente do PMDB, chamou o recém-eleito deputado Dante de Oliveira e lhe comunicou  que a Proposta de Emenda à Constituição que ele apresentara seria encampada pelo partido na campanha por eleições diretas.  Assim surgiram as primeiras evoluções do movimento “Diretas Já”, sem redes sociais e telefone celular, impulsionado por bons setores da imprensa e que lentamente ganhou apoio popular. Das pequenas reuniões em ruas ou teatros, a mobilização provocou esperança de vencermos  a ditadura.

Apesar da pressão social, a Emenda foi rejeitada em 25 de abril de 1984, obtendo maioria de votos sem alcançar o quórum para aprovação. Foram 298 votos a favor, 65 contra e 113 decisivas e vigorosas ausências. Depois de mobilizar multidões pela realização de eleições diretas, como participar da eleição indireta, mesmo para perder? Resposta: só com apoio popular. Nova rodada de comícios e os das “Diretas Já” foram a semente para os da “Mudanças Já”. Novamente multidões em apoio ao fim da ditadura.

No Colégio Eleitoral nossa minoria transformou-se em maioria graças à pressão popular a motivar a adesão de políticos do sistema que criaram a Aliança Democrática em apoio à chapa do PMDB. O Tribunal Superior Eleitoral, com o voto vencedor do ministro Néri da Silveira, reconheceu como válidos os votos dos delegados de um partido em candidato de outro, e Tancredo passou a ser amplamente majoritário, a ponto de rejeitar o apoio de um deputado que militou distribuindo falsas pesquisas que indicavam a vitória de Paulo Maluf.

Em 15 de janeiro de 1985, o Colégio Eleitoral reuniu-se no Plenário da Câmara dos Deputados e a chapa Tancredo/Sarney foi eleita com 480 votos (72,4%), contra 180 votos de Paulo Maluf (27,3%). Daí até a posse, marcada para 15 de março, Brasília foi invadida pela alegria de jornalistas e militantes políticos de todos os cantos. Desde os primeiros dias do mês, Tancredo resistia a dores abdominais se automedicando. Temia uma virada de mesa se não assumisse a Presidência da República.  Acabou internado na véspera da posse, pouco depois das 10 horas da noite de 14 de março.

Os temores de Tancredo foram incorporados por todos os que estavam no centro dos acontecimentos em favor da Democracia. Do outro lado, maquinavam para que Sarney não tomasse posse.  Boatos davam conta de que o general Walter Pires, ministro do Exército de Figueiredo, chegou a propor intervenção militar ao chefe da Casa Civil, Leitão de Abreu, simpatizante da Aliança Democrática. Parte da cúpula do PMDB jantava na embaixada de Portugal onde Fernando Lira, futuro ministro da Justiça, foi avisado da internação de Tancredo por Aluísio Alves, indicado para o Ministério da Administração.

Pessoas experientes viram que precisavam atuar para impedir uma crise política. Em Brasília, o carro do Deputado Heráclito Fortes era um raríssimo exemplar a ter telefone e foi requisitado pelo Dr. Ulysses, que já a bordo com Fernando Henrique Cardoso, foi ao encontro de Francisco Dornelles, Secretário da Receita Federal, sobrinho de Tancredo e futuro Ministro da Fazenda.

Daí, ao encontro de Leitão de Abreu, a quem Ulysses rejeitou a hipótese de assumir a Presidência da República. Mesmo naquela época o presidente da Câmara dos Deputados era o primeiro na linha de sucessão com o impedimento do Presidente da República e do vice. Já era conhecido o parecer do jurista Afonso Arinos, para quem Sarney não era vice de Tancredo e sim Vice-Presidente do Brasil e, portanto, ele teria que assumir o cargo.

Reza a lenda espalhada pelo próprio Ulysse que o General Leônidas Pires Gonçalves, próximo Ministro do Exército, decidiu a parada ao desembainhar a Constituição e com a mão sobre ela sentenciar: “Quem assume é o vice-presidente eleito”. Caso contrário, o presidente da Câmara assumiria interinamente e teria que convocar eleições indiretas em 90 dias. Então, o presidente do Brasil teria sido Paulo Maluf.  A partir de uma hora da madrugada do dia 15, a decisão se espalha ainda em pequenos círculos, mas não espanta a desconfiança que venceu o sono na madrugada de vigília.

Já indicado para assumir a Secretaria Geral do Ministério da Administração, eu fazia minha despedida do jornalismo da Rede Bandeirantes de Televisão a partir de um estúdio instalado na sobreloja de um hotel em Brasília. Ali fiquei, ao vivo, comentando as informações que recebia do ministro Aluizio Alves. Naquele estúdio, comandado pela diretora de jornalismo Silvia Jafet, também fizemos uma trincheira em defesa da posse do vice eleito graças ao movimento que começou com a campanha das diretas e permanecemos no ar, ao vivo, por horas, até que se confirmou a posse de Sarney. O Brasil tinha uma certa tradição de não dar posse aos vices, mesmo na ditadura. Com o derrame de Costa e Silva em 1969, assumiu uma Junta Militar em lugar do vice, Pedro Aleixo.

Na manhã de 15 de março, Sarney tomou posse perante o Congresso, com a Praça dos Três Poderes repleta de pessoas e com alguns bonecos gigantes de Tancredo Neves. Do Palácio do Planalto, o general Figueiredo saiu pelos fundos e a faixa presidencial foi entregue a Sarney por um funcionário. Acabara a ditadura, mas não tanto. Ainda vigorava a Emenda Constitucional número um de 1969, outorgada pela Junta Militar.

O presidente Sarney mandou ao Congresso a convocação da Assembleia Nacional Constituinte, autuada como PEC 26/85. Lá eu já estava, eleito deputado, e ajudei a resistir à nova tentativa de retrocesso. A partir de junho de 1988, os parlamentares obstruíram sessões para interromper e até revogar a convocação da Constituinte, e daí manter em vigor a Emenda número um de 1969. O alarme de Sarney estava ligado e a resposta de Ulysses veio emocionada:

“Sou presidente da Assembleia Nacional e não de um hospício nacional. Se houver dentro da Constituinte quem a queira transformar em um sanatório geral, duvido que consiga outros 280 loucos para suspender os trabalhos e fazer prevalecer a Carta outorgada pelo regime militar”.

A partir daí os trabalhos foram corridos e a Constituição Cidadã promulgada em cinco de outubro de 1988 revoga a Emenda nº 1, de 1969. Chegamos à Democracia.  Ditadura nunca mais.

 

Miro Teixeira é jornalista e advogado. Deputado Constituinte de 1988, foi deputado federal por 11 mandatos, nomeado Secretário-Geral do Ministério da Administração em 1985 e Ministro das Comunicações em 2003 durante o primeiro governo Lula. Artigo transcrito do jornal da Associação Brasileira de Imprensa (ABI).

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