Estudo: ancestrais dos seres humanos eram surpreendentemente lentos

*O artigo foi escrito por Tom O’Mahoney, professor sênior em Ciências Biomédicas da Universidade Anglia Ruskin, e publicado na plataforma The Conversation Brasil.

Imagine a cena, há cerca de 3 milhões de anos, no que hoje é o leste da África. Ao lado de um rio, um antílope ferido cai e dá seu último suspiro. A carcaça é logo atacada por hienas, que lutam com um crocodilo. O crocodilo aparece e agarra parte do animal.

As hienas vencem e o crocodilo se retira da disputa levando apenas uma perna do antílope. Depois de se saciarem, as hienas se afastam. Alguns macacos de aparência engraçada se aproximam, andando eretos. Eles têm em suas mãos o que parecem ser pedras com bordas afiadas. Eles cortam apressadamente alguns pedaços de carne e começam a mastigá-los.

Suas brigas atraem a atenção de um Homotherium (um grande felino extinto, com dentes de formato de cimitarra, um tipo de espada), que se aproxima sorrateiramente e aparece de repente. Será que esses estranhos macacos sobreviverão ao encontro com o felino? Será que eles conseguem correr rápido e longe o suficiente?

Nossa equipe de pesquisa modelou a anatomia desses primeiros ancestrais humanos, Australopithecus afarensis, para descobrir o quão bem eles conseguiam correr. O Australopithecus afarensis é um dos mais conhecidos humanos ancestrais primitivos, que viveram entre 2,9 milhões a 3,9 milhões de anos atrás.

O esqueleto parcialmente completo do Australopithecus afarensis Lucy, ou Dinkʼinesh (do amárico: ድንቅ ነሽ, lit. “você é maravilhoso”) é mundialmente icônico como uma representação do bipedalismo primitivo (a capacidade de andar sobre duas pernas). Encontrado na Depressão de Afar no nordeste da Etiópia, a descoberta recebeu atenção mundial quando foi feita em 1974. Era a prova de que a expansão do cérebro evoluiu depois que os ancestrais humanos começaram a andar sobre duas pernas, como os cientistas acreditavam há muito tempo.

Na época, alguns pesquisadores também tentaram associar a anatomia do Australopithecus a um ancestral comum, ainda desconhecido, de humanos, gorilas e chimpanzés. Desde então, porém, essa hipótese foi refutada.

Atualmente, os cientistas acreditam que a nodopedalia (em que o animal usa os nós dos dedos das patas dianteiras para apoiar o peso do corpo) provavelmente evoluiu várias vezes nos macacos, pois o estilo de andar e a arquitetura interna das mãos e cotovelos dos macacos são sutilmente diferentes entre si. Os pesquisadores também acreditam que a anatomia que vemos nos hominídeos reflete uma adaptação para movimento ereto em árvores de um ancestral distante.

Os primeiros bípedes, como o Ardipithecus kadabba, que se parecia um pouco com um gorila, viveram na África entre 5,8 e 5,2 milhões de anos atrás. Eles viviam em habitats de mosaico (uma mistura de paisagens abertas e arborizadas), de modo que alguma adaptação à movimentação em árvores faria sentido.

Acesso à carne na dieta

Até recentemente, os cientistas pensavam que apenas os animais do gênero Homo, que surgiu há cerca de 2 milhões de anos, produziam ferramentas de pedra. As descobertas de ossos marcados com cortes em Dikika, Etiópia (em 2009), datada de 3,4 milhões de anos, e, em 2011, de ferramentas de pedra em Lomekwi, Quênia, de 3,3 milhões de anos atrás, mudaram as ideias dos cientistas sobre o acesso que o Australopithecus tinha à carne para sua dieta.

O debate agora é mais uma questão de saber se os Australopithecus matavam animais regularmente ou se comiam a carne de carcaças deixadas por outros predadores (acesso secundário).

Para ter acesso primário e matar animais regularmente, eles precisavam ser capazes de fazer duas coisas. Correr rápido (disparos em velocidade para ultrapassar um animal desavisado) e correr por longos períodos de tempo (para desgastar uma presa).

Essa é a hipótese da corrida de resistência. Acredita-se que o surgimento desse comportamento coincida com a anatomia mais moderna dos humanos, como a observada no Homo erectus, que viveu de cerca de 2 milhões de anos a cerca de 1 milhão de anos atrás.

A melhor maneira de testar se o Australopithecus era capaz de correr com resistência em velocidades que consideramos “modernas” é reconstruir o esqueleto do Australopithecus afarensis e simular como ele pode ter se movido.

Para tentar responder a essa pergunta, minha equipe reconstruiu o esqueleto completo de Lucy, usando modelagem em 3D. Quando faltavam partes, nós as estimamos usando versões em escala de outros esqueletos de Australopithecus.

Como Lucy também está intimamente relacionada aos chimpanzés, também mesclamos o material esquelético do Australopithecus e de humanos e chimpanzés modernos, usando uma técnica analítica chamada morfometria geométrica.

Em seguida, começamos a colocar músculos nos ossos da pélvis e dos membros inferiores do Australopithecus e em um modelo humano moderno, usando o software de código aberto Gaitsym. Os músculos e outros tecidos moles não são preservados nos fósseis, portanto, variamos as propriedades musculares de semelhantes às dos chimpanzés para semelhantes às dos humanos, produzindo uma série de estimativas de velocidade e economia de corrida.

Também executamos várias simulações nas quais adicionamos e removemos um tendão de Aquiles longo, que os chimpanzés não têm, pois acredita-se que ele afeta a velocidade de corrida e o uso de energia ao melhorar a recuperação.

Esse foi um trabalho de equipe, com reconstruções em vários laboratórios. As simulações foram executadas nas instalações de computação de alto desempenho da Universidade de Liverpool.

Essas simulações revelaram que Lucy não era tão boa em corrida quanto os humanos modernos. A velocidade máxima que nossas simulações conseguiram produzir foi de 11 milhas por hora (mph) – cerca de 17,6 km/h), com um mínimo de cerca de 3,35 mph (5,36 km/h). Atletas velocistas de elite, entretanto, podem atingir velocidades de pico de mais de 20 mph (32 km/h). Mas mesmo velocistas que não são de elite podem atingir cerca de 17,6 mph (28 km/h).

Também descobrimos que o custo metabólico do transporte (quanta energia é necessária para se mover) era entre 1,7 e 2,9 vezes maior em Lucy do que em um ser humano moderno. Quanto mais “parecida com um macaco” for a arquitetura muscular e quanto mais curto for o tendão de Aquiles, maior será esse custo.

Parece que as proporções dos membros humanos modernos, combinadas com as principais mudanças na arquitetura do músculo da panturrilha (como fibras relativamente curtas e grandes áreas de seção transversal), além de um tendão de Aquiles longo, permitiram uma corrida muito mais rápida no gênero Homo.

Isso significa que provavelmente não era fisiologicamente possível que o Australopithecus afarensis se envolvesse em caça persistente, ao contrário das espécies posteriores do gênero Homo.

Voltando à nossa história do início, é provável que os australopitecíneos desse grupo não tivessem escapado do grande felino. Eles simplesmente não conseguiriam correr rápido ou por tempo suficientes.The Conversation

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