“Eu estava pronto para morrer”, diz cadeirante ao lembrar da água subindo no pátio de casa

A tragédia que atingiu Canoas há um ano teve enorme impacto em, pelo menos, metade da população da cidade. A estimativa é de 180 mil pessoas afetadas, segundo o Estado. Por trás de cada número, há histórias de vida e dramas pessoais que perduram até hoje.

Joãozinho, como é conhecido, conta com a ajuda de amigos e vizinhos para conseguir superar as adversidades



Joãozinho, como é conhecido, conta com a ajuda de amigos e vizinhos para conseguir superar as adversidades

Foto: PAULO PIRES/GES

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Morador do bairro Fátima, João Loureço Pereira Borges é um exemplo. Foi em 2012 que uma inflamação na medula lhe limitou os movimentos. O trabalhador passou, desde então, a uma incansável luta pela recuperação dos movimentos.

Chegou perto de voltar a andar no início de 2020, quando, graças às sessões de fisioterapia, conseguiu permanecer novamente de pé. A pandemia por coronavírus, entretanto, adiou o sonho de voltar a andar novamente, como ele lembra tristemente.

“Chegaram a tirar uma fotografia minha, todo orgulhoso, de pé e encostado em uma parede”, relata. “Eu estava com as sessões de fisioterapia agendadas para começar a praticar exercícios com o andador quando começaram as mortes por Covid.”

João Lourenço precisou se resignar a permanecer preso na cadeira de rodas por mais um tempo. Em 2024, quando ele pensava que já havia encarado o maior drama de sua vida, uma ligação telefônica mudou tudo.

“Eu não estava acompanhando as notícias na TV”, lembra. “De repente, um conhecido meu ligou e disse ‘João, precisa dar um jeito de sair de casa’. Fui olhar pela janela e a água no pátio já estava na altura da roda na cadeira.”

Na época, aposentando-se por invalidez, João estava cuidando da mãe, Dolores Borges, 94 anos, acamada com problemas diversos de saúde. Sabendo que não conseguiria tirá-la do local, esperou pelo pior.

“Já não dava tempo para sair de casa e nem tentar mais nada”, recorda. “A gente não tinha luz e o celular já tinha descarregado a bateria. Resolvi me abraçar na minha mãe e esperar. Eu estava pronto para morrer ali mesmo.”

Foi graças a um vizinho que João e a mãe conseguiram sair de casa. Acabaram abrigados no segundo piso da casa dele, onde aguardaram o resgate em meio à tensão crescente da água que não parava de subir.

“Buscaram a gente de barco”, diz. “Então nos levaram para o ginásio da Ulbra, mas chegando lá não conseguimos nem entrar. Já havia 7 mil pessoas. Nos levaram para o CAIC [Escola Erna Würth, no bairro Guajuviras] e por lá a gente parou.”

Foram dois meses no abrigo instalado na instituição. Durante o período, as condições da saúde de Doralice pioraram e ela acabou morrendo. Não houve ressentimento de João.

“A saúde da minha mãe já estava muito fragilizada e, dentro do possível, embora um período muito difícil, não dá para reclamar de como nos trataram no abrigo”, afirma. “Era gente demais. Todos reunidos em um mesmo espaço. Acho que os voluntários se esforçaram ao máximo.”

Dificuldade

Foi por meio de fotografias e vídeos que João Loureço descobriu que a casa em que morou durante a vida inteira na Rua Bartolomeu de Gusmão não resistiu e acabou arrastada pela água. Ele sabia, portanto, que não teria mais um teto ao sair do abrigo.

“Só sobrou um pequeno galpão que servia de garagem, mas até este espaço a Prefeitura de Canoas condenou, porque não tinha condições de ficar de pé”, relata. “Desde então, vivo de aluguel, me virando aqui e ali, para conseguir pagar as contas.”

Aos 59 anos, João vive hoje em pequena casa a poucos metros do terreno em que morou durante uma vida. Tenta se manter por meio de doações. Tem uma TV e um colchão improvisados, além de alguns itens de cozinha.

Circulando pela casa, com dificuldade, empurrando uma cadeira de rodas quebrada, não vislumbra uma melhoria imediata da situação, mas sonha com a retomada das sessões de fisioterapia e a recuperação de um espaço para chamar de seu.

“Queria ter força para recomeçar, mas hoje, sinceramente, eu não tenho”, desabafa. “Sei que tem muita gente em situação pior que a minha desde a tragédia, então não reclamo muito. Cada um tem sua cruz para carregar.”

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