Racismo não é um mal-entendido, é escolha política e posição de poder

Era uma mesa de literatura. Era para ser uma celebração do encontro. Mas o que vimos foi a repetição de um gesto antigo, colonizador, mascarado de espontaneidade e escamoteado de curiosidade. Em pleno 2025, uma mulher branca de 33 anos, com capital simbólico e social de sobra, ainda se permite “brincar” com o cárcere para se aproximar de uma estética que julga ser legítima apenas se associada à marginalidade. Não. Não é desconhecimento. Não é distração. É projeto. É racismo.

A escritora Camila Panizzi Luz, ao afirmar em tom de escárnio que “nunca foi presa, mas agora sou da sociedade, né?”, ao tentar se inserir no Coletivo Neomarginais — coletivo formado por escritores das margens urbanas — não com escuta, mas com espetáculo, expôs o vício colonial que a branquitude ainda carrega: o de se ver como centro, mesmo quando pisa nos limites do que não conhece. Ao convidar o autor Wesley Barbosa ao palco, não o ouviu. Quis, na verdade, usá-lo de escada para performar um tipo de solidariedade que já nasce podre: a da condescendência.

A branquitude brasileira — especialmente aquela que se diz progressista, letrada e sensível — precisa fazer um exame de consciência urgente. A escravidão não foi um acidente histórico, foi uma política de Estado. Seus reflexos não são bruma do passado, são estruturas que seguem moldando o presente. Associar homens negros à prisão, mesmo como “piada”, é perpetuar os códigos dessa lógica escravocrata. É reforçar o pacto narcísico da branquitude com a violência e com o monopólio do valor humano.

O Brasil não é mais um país em processo de aprendizagem racial. Ele é, sim, um país de resistências conscientes e de violências igualmente conscientes. Quem, em 2025, ainda se diz “aprendendo” sobre racismo, está, na verdade, escolhendo não saber. Porque saber exige revisão de privilégios. E rever privilégios significa ceder poder. Camila não escorregou. Ela exerceu. Ela se sentou no trono da soberba, usou o microfone como cetro e praticou, ali mesmo, no palco, a velha pedagogia da dominação: calar o outro sob o pretexto de incluí-lo.

Não há mais espaço para o eufemismo. A naturalização da prisão como identidade possível para pessoas negras é uma das mais violentas expressões do racismo estrutural brasileiro. Reduzir a potência de uma literatura — que nasce da dor, da insubmissão e da afirmação política — a uma piada de palco é não apenas insensível, é criminoso. A escritora se diz mal interpretada. Mas não há outra interpretação possível quando o estereótipo é evocado com tanta precisão. Não é equívoco. É escolha.

A reação do Flipoços foi rápida e firme: retirou a autora da programação, recolheu seus livros, emitiu nota oficial e declarou apoio público a Wesley Barbosa e ao Coletivo Neomarginais. É uma ação mínima diante do estrago simbólico causado. Mas foi necessária. Porque já passou da hora de instituições culturais deixarem de relativizar a violência quando ela se apresenta com roupa limpa e sorriso no rosto. É preciso nomear: o que aconteceu foi racismo. E mais, foi um exercício de poder. De um poder que só existe enquanto alguém for mantido embaixo.

Em sua defesa, Camila declarou que sempre “abriu espaço para outras vozes”. Mas a pergunta que resta é: que tipo de espaço é esse que ainda precisa ser “cedido”? E por que a voz negra só é admitida quando confirmada por uma curadoria branca? Não se trata de abrir espaço. Trata-se de sair do caminho.

Literatura não é performance de virtude. Literatura é instrumento de memória e ruptura. Quando uma autora se vale da estrutura que tem para reforçar os grilhões simbólicos que tentamos quebrar há séculos, ela não está sendo ingênua. Está sendo cúmplice.

Wesley Barbosa não foi apenas desrespeitado. Ele foi violentado pelo que representa: a insurgência de uma voz que não precisa da chancela branca para existir. O desconforto que causou não foi pela fala, mas pelo simples ato de estar. E essa é a maior afronta para quem ainda acredita que o centro do mundo deve ter a sua cara.

O episódio do Flipoços nos obriga a ir além do cancelamento. É preciso fazer da denúncia um ponto de virada. Que os festivais literários do futuro não tenham apenas mesas inclusivas, mas estruturas que reconheçam o racismo como uma escolha ideológica — e o combatam como tal. Que escritores negros não sejam mais tolerados como exceção folclórica, mas reconhecidos como parte essencial e incontornável da literatura brasileira.

E que a branquitude, enfim, pare de brincar de ser “marginal” com a liberdade que só ela tem: a de rir, sair ilesa e voltar para casa sem algemas — físicas ou simbólicas.

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