Moda e direito: a estagnação legal das marcas de posição no Brasil

No mundo da moda, a identidade visual vai muito além do logotipo. A maneira como um símbolo é aplicado em uma peça — seja uma listra lateral no tênis ou um botão dourado no cós da calça — pode se tornar um verdadeiro diferencial de marca. Desde 2021, o Brasil passou a permitir o registro de marca de posição, um recurso que oferece proteção legal a elementos que sempre estiveram no imaginário coletivo, mas ainda não eram juridicamente reconhecidos. Agora, estilistas e grifes ganharam uma nova forma de garantir exclusividade sobre seus designs. No entanto, segundo a professora de direito comercial e propriedade intelectual da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FND/ UFRJ) Kone Prieto, a realidade não condiz com essa simples ideia.

Vem entender!

Na imagem com cor, foto de zendaya com sapatos loubutin - metrópoles
Zendaya com saltos da Louboutin

 

O que é marca de posição na moda?

Diferente das marcas convencionais (verbais ou figurativas), a marca de posição protege o uso específico e constante de um sinal em um local determinado de um produto. É o caso da sola vermelha dos sapatos Louboutin, das três listras da Adidas ou dos três furos nos sapatos da Osklen.

Esse tipo de registro permite que a empresa tenha exclusividade na combinação entre forma e local do sinal, agregando valor à marca e reforçando o reconhecimento imediato por parte do consumidor. Outros dois exemplos são a logo da Puma nas laterais dos tênis e a costura do bolso traseiro dos jeans da Levi’s.

Na imagem com cor, foto de tênis da osklen - metrópoles
Tênis da Osklen

 

Tênis da Adidas em clique de street style - Metrópoles
Tênis da Adidas

 

Na imagem com cor, foto de sarah jessica parker com sapatos loubutin - metrópoles
Sarah Jessica Parkercom de Louboutin

 

O que diz a especialista Kone Prieto

Apesar da crescente importância internacional desse tipo de marca, no Brasil o cenário é de estagnação. Mesmo após anos de debate interno e a publicação de uma resolução que regulamenta o tema, o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) ainda mantém paralisados cerca de 400 pedidos de registro de marca de posição.

Desde 2021, quando a norma passou a valer, apenas um registro foi concedido— os três pontos da marca brasileira Osklen — e outro, o da famosa sola vermelha da Louboutin, foi indeferido. O restante dos processos não teve qualquer andamento.

Segundo a professora de direito comercial e propriedade intelectual da UFRJ e da Academia do INPI, a situação revela uma paralisia institucional preocupante: “O Brasil anda na contramão do mundo. Enquanto outros países protegem ativamente esses sinais distintivos, aqui os pedidos sequer são analisados. Isso afeta diretamente a inovação e desestimula o investimento em diferenciais competitivos por parte das empresas”.

“O empresariado brasileiro olha isso e pensa: ‘Ah, eu não vou atrás disso não. Eu não vou atrás de criar um diferencial para o meu produto’”, completa Prieto.

A profissional ressalta ainda que todo esse cenário contraria o Protocolo de Madri, tratado internacional que simplifica e agiliza o registro de marcas em vários países, e que o Brasil aderiu em 2019. Ou seja, a não análise dos pedidos estrangeiros desse tipo pode ainda afetar a credibilidade internacional do país.

Enquanto isso, países como China e Estados Unidos avançam no uso da propriedade intelectual como ferramenta estratégica de proteção e desenvolvimento industrial. A China, inclusive, tem usado registros internacionais para blindar seus produtos contra barreiras tarifárias e fortalecer presença global.

sapatos loubutin - metrópoles
A marca francesa Louboutin, por exemplo, teve o pedido de registro indeferido pelo INPI, apesar de decisões favoráveis na Justiça brasileira em primeira e segunda instâncias

 

Na imagem com cor, foto de hailey bieber com tênis da adidas - metrópoles
Hailey Bieber com tênis da moda, da Adidas, o modelo samba

 

Tênis da Osklen

 

Falhas e impactos econômicos

Além da paralisia generalizada dos pedidos, o INPI tem descumprido o prazo legal de 60 dias (30, prorrogáveis por mais 30) para se pronunciar sobre os registros, e não apresenta justificativas claras para isso. “Há uma quebra de isonomia. O órgão não está cumprindo sua função constitucional de proteger a propriedade industrial de forma eficaz”, ressalta a especialista.

Essa inércia afeta diretamente empresas brasileiras. Marcas como o capacete do Instituto Ayrton Senna também aguardam definição, prejudicando a capacidade de defesa legal desses símbolos em caso de uso indevido. “Sem o registro, uma empresa perde força jurídica. É como ter uma casa e não possuir a escritura: você a tem, mas está vulnerável”, afirma.

Outro reflexo é o aumento da judicialização. Com o INPI paralisado, empresas recorrem aos tribunais para garantir seus direitos, sobrecarregando o judiciário com demandas que deveriam ser resolvidas administrativamente.

A Associação Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI), que deveria fomentar a inovação e acompanhar a atuação do INPI, também é alvo de críticas pela falta de pressão sobre o instituto. O INPI, por sua vez, está vinculado ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), que pouco se manifesta sobre o tema, segundo Prieto.

“O sistema inteiro está falhando. Enquanto isso, o empresariado brasileiro perde oportunidades de posicionar seus produtos como premium, com diferenciais protegidos, e acaba disputando mercado apenas pelo preço”, conclui.

Christian Louboutin - metrópoles
Christian Louboutin

 

sapatos loubutin - metrópoles
Saltos de Greta Gerwig no Festival de Cinema de Cannes, vindos direto do desfile de moda de Maison Margiela

 

foto de taylor swift com sapatos loubutin - metrópoles
Taylor Swift com bota da Louboutin, um verdadeiro ícone da moda

 

O que diz o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI)

A coluna Ilca Maria Estevão entrou em contato com a assessoria de imprensa do INPI e obteve as seguintes respostas:

Quais são os requisitos para registrar uma marca de posição no Brasil?

Considera-se que a marca de posição é aquela formada pela aplicação de um sinal em uma posição singular e específica de um determinado suporte, resultando em conjunto distintivo capaz de identificar produtos ou serviços, desde que a aplicação do sinal na referida posição do suporte possa ser dissociada de efeito técnico ou funcional.

Os sinais a serem depositados como marca de posição para fins de registro pelo INPI devem seguir os requisitos demandados para todos os pedidos de registro de marca, segundo previsão do Manual de Marcas do INPI.

Como funciona o processo de análise de uma marca de posição dentro do INPI?

O pedido de registro de marca de posição é analisado quanto aos requisitos de registrabilidade de um sinal dispostos em lei, tal qual os pedidos de registro de marca em outras apresentações. Contudo, uma vez que existem especificidades quanto a marca de posição, o INPI possui um grupo de examinadores especializados neste tipo de pedido de registro de marca, sendo estes pedidos direcionados ao grupo.

Que recomendações o INPI dá para marcas que desejam iniciar esse tipo de registro?

Recomendamos que o requerente leia atentamente os requisitos específicos de marca de posição definidos pelo INPI, constantes do Manual de Marcas. Por exemplo, um pedido de registro de uma marca de posição deve possuir uma vista do suporte, representado em linhas pontilhadas ou tracejadas, sendo indicado o exato posicionamento e a proporção do sinal aplicado, e possuir uma descrição textual da marca, a fim de delimitar a proteção reivindicada. Ademais, a aplicação do sinal ao suporte deve constituir um conjunto distintivo, capaz de ser percebido como marca pelo público consumidor. Antes de iniciar o registro de uma marca de posição, o requerente deve garantir que o sinal cumpre todos os requisitos.

Como o Brasil está em relação a outros países no reconhecimento e registro desse tipo de marca?

Antes de iniciar o novo serviço de concessão de registro de marca de posição, o INPI conduziu pesquisas de benchmarking em outros escritórios internacionais de PI que promovem o registro de marcas de posição. O INPI definiu os procedimentos de registro deste tipo de marca em observação às práticas de outros países, porém, em conformidade com a LPI e com as práticas de exame de marcas já executadas pelo Instituto.

Tem diversos pedidos feitos ao INPI, por que nenhum deles, além da Osklen e Louboutin, não foram sequer analisados?

O INPI já recebeu até o momento cerca de 600 pedidos de registro de marca de posição. Desses, existem pouco mais de 200 pedidos ainda pendentes de exame. Destacamos que os pedidos depositados no INPI são liberados para exame segundo a ordem cronológica da data do depósito, independente da sua apresentação. Portanto, esses pedidos serão liberados para o exame oportunamente, respeitada a ordem cronológica de depósito no INPI.

Modelo de tênis com os três furos da Osklen

 

Na imagem com cor, foto de Emrata com roupas da adidas - metrópoles
As litras da Adidas são referência na moda

 

Na imagem com cor, foto de rihanna com sapatos loubutin - metrópoles
Solado da Louboutin na versão ainda mais exclusiva para Rihanna

O impasse no reconhecimento das marcas de posição no Brasil revela mais do que uma falha burocrática na moda: escancara a falta de alinhamento entre inovação, legislação e incentivo industrial. Enquanto países enxergam o valor estratégico da identidade visual como ativo competitivo, o Brasil ainda trava com a lentidão institucional. Proteger esses sinais não é apenas sobre a questão estética; é dar respaldo legal à criatividade, impulsionar o setor produtivo e garantir que o diferencial das marcas seja visto, reconhecido e respeitado mundo a fora.

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